*ALERTA DE GATILHO.*
CONTÉM CENAS DE VIOLÊNCIA DOMESTICA E PSICÓLOGA.
Enquanto o senhor Lim e eu estudávamos o arquivo mandando pela imperatriz, da minha parte eu tentava entender o por que de esse caso ser tão sigiloso e entregue pelas mãos da própria deusa de Jumadeung.— Senhora, já pegamos casos assim, esse não seria o primeiro. Não estou entendendo.
— Nem eu...
Um alarme surgiu no aplicativo. Era os níveis de energia de nossa vítima, beirando os cem por cento.
— Mas, a imperatriz não falou que não iria aparecer no sistema?
— O que consta aqui, são apenas os níveis de energia. Nenhuma informação a mais. Veja.
Apontei em direção ao seu celular. O senhor Lim o observou por um momento.
— Precisamos chegar logo, senhora.
— Sim, eu irei direto para a casa dela. Ache o marido.
— Sim senhora.
Tanto o gerente Lim quanto eu fomos para uma parte da rua onde não havia câmeras e movimento de pessoas, para poder nos teletransportar.
O local era um apartamento no centro da cidade. Local de classe média alta, onde os novos ricos moravam.
— Como chegou até aqui? Quem é você? Foi ele que te mandou aqui?
A mulher me olhava assustada enquanto segurava aquela arma próximo a sua boca.
— Senhora Bo- Kyung...
Me encostei próximo a janela da sala. As mãos no bolso e observando a vista incrível que a cobertura proporcionava.
— Você tem uma casa incrível. Me parece ser uma mulher de sorte, preciosa...*
Em meio ao choro, ela começou a rir de forma bem debochada.
— Acho no mínimo icônico eu me chamar Bo- Kyung e estar neste momento nesta situação e ter vivido esse inferno por todos esses anos. Se foi ele que te mandou aqui para tentar me convencer, sinto muito informar, mas você não vai conseguir nada a não ser morrer comigo.
Apontou a arma na minha direção. Apenas sorri
— POR QUE VOCÊ ESTÁ RINDO?
Me aproximei cautelosamente dela que estava sentada no sofá, uma arma na mão esquerda e um porta retrato na direita.
— O que? Ele também foi um verdadeiro príncipe com você? Te levou flores, chocolate, beijou sua mão e abriu a porta do carro? Falou coisas bonitas e românticas no seu ouvido? O que ele falou de mim para você? Que eu sou a culpada de tudo? Que eu o faço agir dessa maneira? Que eu o levo a loucura e por isso ele acaba fazendo bobagens que ele não quer? Que eu sou a pessoa má e ele a vitima?
A senhora Bo- Kyung era uma mulher de 45 anos, muito bonita, pele e cabelos bem cuidados, aparentando ser pelo menos dez anos mais jovem.
— Você não vai me convencer. Eu prefiro morrer a continuar nesse inferno. E eu não me importo se para isso eu terei que levar mais alguém comigo.
— Você não conhece o inferno, não sabe o quão cruel ele pode ser, principalmente com quem comete suicídio.
— E o que você sabe sobre lá?
— Que a todo momento você deseja voltar no tempo e tomar uma decisão diferente.
Ela riu novamente.
— Você é mais louca do que eu.
Me olhou de cima a baixo em uma análise muito julgadora.
— Olhe para você. Nunca soube o que é sofrer nessa vida. Você nunca conheceu o inferno, eu sim. E não tem nada pior do que acordar e saber que seu dia não será diferente do anterior e que qualquer deslize as coisas só pioram.
— Não fale isso. O pós vida pode ser muito mais cruel do que a vida aqui na terra.
— Cala a boca! — Levantou-se.
Puxou o gatilho e antes que a bala chegasse a encostar em mim, a segurei com a ponta dos dedos. Seus olhos se arregalaram ainda mais.
— O que... O que você... — Deu dois passos para trás e caiu no sofá novamente.
— Eu sou uma ceifadora, nascida direto do inferno.
Dei dois passos em sua direção. Assutada atirou novamente e mais uma vez parei a bala com os dedos.
— Não... Você não vai me levar para o inferno... Eu quero paz, por isso estou fazendo isso.
— A última coisa que você terá do outro lado é paz. E eu posso te garantir isso.
— Eu não aguento mais... Qualquer coisa é melhor do que isso...
Direcionou a arma para a própria cabeça.
— Eu sei que está doendo, que você está confusa e com medo. Que quer ter a sua liberdade de volta. Mas, não será dessa forma.
— E como será? Eu já tentei de tudo, mas só quem se prejudica sou eu. Eu não aguento mais apanhar, ouvir gritos e xingamentos, levar a culpa por tudo, mesmo quando não estou fazendo nada.
Abraçou as pernas e começou a chorar.
— Eu o amava, e eu tinha certeza que era recíproco, até o dia em que nós casamos e começamos a morar juntos. Ele começou a mudar, uma mudança pequena aqui, outra ali. Não parecia nada de mais, até que quando percebi, estava presa em um círculo sem fim de ódio, agressões e arrependimentos. Ele tirou tudo de mim aos poucos. Hoje não tenho mais nada. Isso aqui? — Apontou para o apartamento — Não é nada. Eu apenas finjo estar tudo bem, que vivo em um conto de fadas, para que eu consiga pelo menos um momento, fingir normalidade. Uma falsa paz.
— Em algum momento você chegou a contar para alguém o que acontecia com você?
— Mas, é claro que sim. E ninguém me ouviu, ficou do lado dele e foi pior para mim. Eu não tenho família e a dele ficou ao seu lado. Meus amigos ficaram do lado dele... O que eu podia esperar? Apoio? A palavra de força maior é a dele.
— Eu acredito em você.
Os níveis de energia negativa nela chegaram em cem por cento.
— Agora não adianta mais. Eu já tomei minha decisão.
Engatilhou a arma novamente e puxou o gatilho. Porém não havia mais balas.
— O que?
Abriu os olhos lentamente e tocou seu corpo até onde conseguiu, conferindo.
— Você parece decepcionada.
Joguei as balas no chão. A senhora Bo- Kyung me olhava ainda mais assustada.
— Me leva daqui. Eu te imploro.
Sentei-me ao seu lado. Ela chorava de vez tudo o que guardou por anos.
— Lá ele não pode me achar. Não deixa ele chegar perto de mim... Mesmo que eu sofra pela eternidade, eu sofro mais estando ao lado dele.
— Pelo contrário, lá ele pode te perseguir pela eternidade. Será a sua tortura no inferno, você viverá em um limbo infinito onde reviverá momentos bem ruins ao lado dele. É isso que o comandante do inferno fará com você. Ou coisa pior...
Ela olhou a linha vermelha em meu pulso.
— O que significa isso?
— Que quando eu era humana, eu me matei. Levada pelo desespero, tirei minha própria vida, deixando para trás o homem que eu mais amava e minha melhor amiga que tinha como uma irmã. Por conta disso, todos meus laços foram cortados com eles e mesmo que eu reencarnasse, não estaria mais ligada a nenhum.
— Eu não me importo de romper laços com ele.
— E com sua família? Seu pai, sua mãe...? Você acha que se eles estivessem vivos, te deixaria nessa situação?
A senhora Bo-Kyung soluçava e mal consegui falar. Os níveis ainda não baixavam.
— Como alguém que estava no inferno, se tornou um ceifador? Se você é mesmo uma ceifadora, por que está tentando me impedir ao invés de me levar?
— O meu trabalho é impedir que outras pessoas passem pelo o que eu passei e tenham o mesmo fim que eu. Após séculos sendo punida no inferno, eu finalmente paguei minha dívida e poderia reencarnar, más não faria sentido estar na terra sem a pessoa que eu mais amava. Mesmo que nós dois não lembrássemos de nossa vida passada, que um dia fomos marido e mulher, o amor um do outro, eu sempre iria sentir um vazio, sentir que algo faltava, não encaixava. Então optei por ser uma ceifadora que salva vidas.
Ela limpou o rosto.
— Ele já reencarnou?
— Ele também é um ceifador.
Me olhou em espanto.
— Então, estão juntos do outro lado?
— Não, como nossa linha do destino foi cortada, hoje só podemos nos contentar em sermos amigos ou colegas de trabalho.
— Ele lembra de você?
— Sim.
— Ele também salva vidas, como você?
— Não, ele escolta as almas recém desencarnadas e as leva para julgamento, onde o supremo decide se ela vai para o céu ou para o inferno de acordo com seus atos em vida aqui na terra. E também aplica punição em casos extremos.
— Que contraditório... Vocês parecem estar realmente em lados opostos.
— Você amava os seus pais?
— Muito... E sinto muita a falta de deles. Será que eu poderia os ver, após a minha morte?
— Se você esperar para que se vá no momento certo, sem interrupções, sim. Eles ainda não reencarnam, mas estão em um ótimo lugar.
Uma faísca de esperança começou a aparecer em seus olhos e os níveis de energia negativa começaram lentamente a baixar. Saindo de cem por cento para noventa e cinco.
— O que você faz da vida?
— Sou Jornalista. Eu apresento o jornal das oito horas e tenho um blog onde denuncio crimes que foram arquivados e esquecidos pela justiça. Uma forma de trazer justiça para quem não a teve.
— Então, você e eu temos trabalhos muito parecidos. Salvamos vidas aqui na terra. Você já parou para pensar em quantas vidas, com o seu trabalho, você já conseguiu salvar? Pessoas que estavam sem esperança e muitas vezes pensando em desistir, mas você lhes deu um sopro de esperança de que tudo ia ficar bem e que tinha alguém que olhava por eles?
Parou para refletir por um instante.
— E quem é que vai trazer justiça para mim? Parece que eu não consigo sair disso sozinha...
— Você fará isso por você, eu apenas te ajudarei até determinado ponto do caminho.
— Eu estou cansada, não sei se consigo mais lutar tanto assim.
— Você é mais forte do que pensa e aguentou muita coisa até hoje, enquanto ajudava a outros. Você foi forte quando decidiu contar a alguém o que estava acontecendo, quando enfrentou a vergonha e uma culpa que não era sua para tentar ficar bem. Se você pode dar voz a outras pessoas, pode fazer a sua ser ouvida também. Aqui fora, há muitas mulheres passando pelo mesmo que você, que querem uma direção, uma luz... Apoio. A certeza de que há saída e que tudo vai ficar bem. Se você desistir agora, ele continuará fazendo isso, com outra. Outros iguais a ele, farão o mesmo... Você pode fazer sua voz ser ouvida e a de milhares de mulheres pelo mundo. Se você desistir agora, quem vence é ele. É isso o que você quer?
A senhora Bo-Kyung voltou a chorar, porém seus níveis de energia baixaram mais um pouco.
— Qual o seu nome?
— Goo Ryeon
— Por que parece mais fácil lutar por outros, do que para si? O fardo parece mais leve vindo de outro do que o seu...
— Quando você busca justiça para outros, no fundo está querendo para si. Está de alguma forma trazendo a justiça para você mesma. Cada pessoa que eu consigo salvar é como se eu de alguma forma me salvasse daquele fatídico dia também. A liberdade acaba vindo em dobro. Você já tem a resposta, está em suas mãos, mas não consegue enxergar por que se concentrou de mais na dor e tudo ao seu redor ficou nublado.
Eu a abracei e por um longo período, ficamos em silêncio, apenas a ouvindo chorar e o choro ser abafado pela minha jaqueta.
— Pare por um momento e olhe tudo ao seu redor. Tudo o que você fez e todas as ferramentas que tem a sua disposição para mudar tudo isso. A única pessoa que pode te salvar é você mesmo, mais ninguém fará isso por você. Você tem as chaves que te tiram dessa prisão.
— Eu estou tão sem forças... Desistir parece mais fácil. Não irá doer mais.
— Acredite em mim, não é mais fácil e lá do outro lado não para de doer, irá doer ainda mais.
— Qual a sua idade?
— Quatrocentos e vinte anos.
A senhora Bo-Kyung me olhou espantada e até parou de chorar, começando a rir.
— Sério?
— Sim, sou uma jovem de quatrocentos e vinte anos, que já viu bastante coisa e já viveu relativamente bem.
Ela limpou o rosto.
— Eu estarei ao seu lado nesse processo, até que esteja pronta para se salvar sozinha e após sair dessa prisão para nunca mais voltar, podendo ajudar ainda mais pessoas a encontrar sua liberdade e onde deixaram suas chaves.
— Você acha que eu consigo?
— Você já está fazendo isso, só não percebeu ainda.
Seus níveis caíram para sessenta por cento. Eu peguei a arma da sua mão. Meu celular tocou, era o gerente Lim.
— Eu o achei. Está em um motel nesse momento.
— O mantenha preso aí até segunda ordem.
— Sim senhora.
Desliguei.
— Era ele? Ele já está vindo?
— Tenha calma, ele não sairá de onde está até que eu queira. Somos só você e eu até tudo isso acabar. Ele não chegará mais perto de você e de ninguém, eu prometo.
Segurei em sua mão para acalma-la. Ela tremia un pouco.
— Quando você estiver pronta.
A senhora Bo-Kyung voltou a me abraçar e ficou assim até se acalmar. Seus níveis baixaram mais cinco por cento.
— Eu quero te mostrar algo, senhora Bo-Kyung.
— O que?
Segurei em sua mão e a levei até seu escritório.
— Abra seu blogger.
Ela assim o fez. Eu estalei os dedos e a mágica começou a acontecer...* SE VOCÊ sofre ou conhece alguém que sofre violência doméstica, denuncie e preste auxílio a vítima, sem julgamentos, sem soluções mágicas, apenas a ouvindo e a encorajando a denunciar e procurar seus direitos.
* Número para denuncia 180
* Número do CVV ( Centro de valorização a vida ) 188
* Lembre-se, sua vida não vale a maldade de outros. Você é único(a) e valioso(a)
* O nome Bo-Kyung em coreano significa " Preciosa"
* Continua...
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Motivos para o Amanhã ( EM REVISÃO)
FanfictionA vida e o trabalho de um ceifador não é e nunca será fácil. Ver as pessoas em seu último momento na terra, temendo a morte, o que vem após ela, chorando em intermináveis arrependimentos e resistindo a passagem chega a ser pior do que o inferno e se...