XXVI

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Uma incógnita para si própria.

Incompreensível nos menores detalhes, passou uma vida inteira buscando decifrar-se. Moldando sua personalidade de acordo com o que lhe fosse imposto.

"Se me contemplo

tantas me vejo,

que não entendo

quem sou, no tempo

do pensamento."

Como o "Auto-retrato", essa era Soraya Thronicke.

Era. Passado. Se foi. 

Alguns diriam que ela havia mudado muito e talvez com razão.

No entanto, não seria essa a sua verdadeira identidade desde o princípio e eles quem não tiveram a chance de conhecê-la?

O questionamento pairava no ar, esperando que ela enfim solucionasse o maior dos mistérios.

A advogada dormiu tranquilamente a noite toda, não sonhou nem tampouco teve pesadelos. Era como se sua mente estivesse se preparando para encerrar mais um ciclo, tirar o grande peso de suas costas. 

Naquela manhã ensolarada, prenúncio do fim, Soraya acordou decidida. Com o desejo de elucidar todas as dúvidas, enterrar de vez o que achava já ter deixado para trás quando saiu de Campo Grande, mas que infelizmente, o destino, com algum truque obscuro lhe trouxera de volta deixando-a novamente à deriva. 

No entanto, estava certa de que precisava retomar as rédeas de sua vida, ainda que não quisesse enfrentar o ex-marido em uma batalha judicial inútil, estava disposta a fazer o que fosse necessário para ter de volta sua liberdade. Era hora de voltar ao começo para poder chegar ao final, sozinha. Sem arrastar ainda mais a mulher que amava para dentro daquele redemoinho de incertezas e conflitos que ela não tinha a menor obrigação de tolerar. 

A mais certa de todas as coisas, porém, fugia de seu entendimento: o Mar Absoluto em que ela navegava era revolto.  

Quando se espreguiçou lentamente, apalpando o colchão ao seu lado em busca da morena, não encontrou nada. Abriu os olhos e se deparou com o vazio da cama e do quarto e seu coração apertou. Respirou fundo imaginando que Simone pudesse ter acordado mais cedo e certamente estaria preparando o café, mas não sentiu o aroma conhecido do pó misturando-se à água, nem do chá estranho que ela costumava tomar ao acordar. Considerou então a hipótese de que pudesse ter saído para passear com Ralf e se acalmou novamente, decidindo descer ela mesma e surpreender com o café antes de se arrumar para finalizar o trabalho e se apresentar ao juiz que segundo suas fontes na defensoria estaria de volta naquela tarde. 


Na outra ponta da cidade, a professora acordou em um susto. Sentiu as mãozinhas geladas apertando suas bochechas e arregalou os olhos, esquecendo-se brevemente de onde estava.

"Acorda, dorminhoca!" É claro que só poderia ser Luiza, impaciente como nunca.

"Vai, tia Si. Minha barriga tá fazendo barulho de poiquinho!" Beatriz disse, acariciando o próprio estômago que roncava de fome. 

Simone sorriu e suspirou aliviada por estar na presença de seus maiores tesouros. No fundo sentia-se culpada por ter saído de casa durante a madrugada sem dar explicações, mas era o que ela precisava naquele momento, para esfriar a cabeça e evitar dizer coisas que poderiam machucar a advogada de maneira irreversível. Apesar de tudo, não queria que ela se magoasse, jamais desejaria isso. E talvez essa fosse sua maior fraqueza. 

"Bom dia, filhotinhos de Taz Mania." Cumprimentou, "Primeiro eu quero um abraço de urso bem apertado." Disse ela, amassando as sobrinhas da mesma forma que haviam feito com ela na noite passada.

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