capítulo VIII

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Heloísa Sampaio

Depois das suposições que Guida e eu tínhamos feito em relação a tal cliente do escritório, minha cabeça só conseguia pensar nisso, mesmo que eu tentasse abstrair.

Apesar de ser advogada criminalista e atender quase todo e qualquer tipo de situação, algumas fugiam completamente do que meu caráter me permitia fazer. Uma delas é tudo que envolva crianças.

Não sou a maior fã desses pirralhos, talvez por nunca ter tido a oportunidade de conhecer algum deles no meu ciclo de convívio, mas jamais iria me tornar conivente com qualquer atitude que possa afetá-los. Afinal, eles sequer tinham discernimento de certo e errado ainda.

Cheguei em casa sentindo minha cabeça pesada de tanto cansaço mental, só queria poder abstrair um pouco esse tanto de problema e ter um final de tarde relaxante.

Ainda estava sem empregada pra me ajudar, depois de ter demitido uma sem noção que vivia se metendo na minha vida sem a minha permissão, então a casa estava um completo caos. Mas continuaria assim, pois não seria hoje que eu iria arrumar.

Após um bom banho quente, deitei no sofá da sala e fiquei mexendo no celular fazendo qualquer coisa que não envolvesse trabalho, afinal, já tinha acabado meu expediente.

Quando menos espero, meu celular começa a apitar uma ligação de um número desconhecido. Eu sempre fui adepta a ignorar ligações de números que não são do meu conhecimento, mas resolvi atender só por desencargo de consciência.

— Alô?

"Oi, Helô. É o delegado Alencar."

Como se fosse possível não reconhecer aquela voz a quilômetros de distância.

— Olha só... Mal conseguiu meu número e já tá atras de mim. — zombei, tirando onda com a sua cara.

Levantei meu corpo, me ajeitando melhor no sofá enquanto mordia a pelinha da borda da minha unha em nervoso, ansiedade, ou qualquer sentimento desses.

"Precisava falar contigo urgente, você tá ocupada agora?"

Sua voz é firme e séria, e eu não era nem boba de negar um chamado desses.

Se eu preferia passar o resto da noite deitada na minha caminha sem fazer nada? Óbvio que sim, mas infelizmente o dever me chama.

— Tô livre, encosto. Me fala onde você tá que eu vou até aí. — respondi já me preparando para ir ao meu quarto trocar o pijama por uma roupa minimamente decente.

"Então... Aí que tá o problema."

Sua voz era típica daqueles momentos que a pessoa sente que vai se meter em uma furada, mas não sabe como sair dali.

— Desembucha, meu filho.

"A Creusa saiu para um barzinho na Vila Isabel e eu tô sozinho com a Ceci aqui em casa... Tem problema se a gente se encontrar aqui? Não queria tirá-la de casa essa hora da noite, porque depois ela demora pra sossegar."

O primeiro pensamento que me veio à cabeça obviamente foi: o que eu tenho a ver com o estado de sonolência da filha dele? Mas depois percebi que não custava nada eu me deslocar até seu apartamento pra facilitar sua vida, por mínimo que fosse.

Afinal, eu já embaçava o trabalho dele quase todos os dias. Uma trégua não faz mal pra ninguém.

— Manda a localização que daqui uma meia hora eu tô aí. — já ia desligar o telefone, mas resolvi provocar um pouquinho. — Acho que hoje é um bom dia pra você me pagar outro jantar, delegado. Tô cheia de fome!

Desliguei o telefone sem dar tempo para mais falatório, porque a última palavra era sempre minha. E isso não mudaria só porque ele é um mandão que não aceita receber ordens.

Toquei a campainha de seu apartamento um pouco depois dos trinta minutos que havia prometido, mas em minha defesa, precisei mudar totalmente os meus planos para poder sair de casa a essa hora da noite.

— Boa noite, Heloísa. — me cumprimentou com um aceno de cabeça, dando espaço para que eu entrasse em sua casa.

Eu que não sou boba nem nada, segurei em seus ombros e depositei um beijo mais demorado na sua bochecha, sem me preocupar com a distância que ele claramente estava pedindo.

— Boa noite, delegado. — sussurrei em seu ouvido antes de me afastar, entrando totalmente no apartamento.

— Ei. — senti uma cutucada no meio das minhas coxas e abaixei meu olhar até a criança que me olhava meio emburrada. — Você deu beijinho no meu papai, tem que dar na Ceci também.

Vê se pode uma coisa dessas? Essa pirralha realmente é filha de quem ela é mesmo, não tem nem espaço para dúvidas quanto a isso.

Mesmo sem muita vontade, me abaixei até ficar na sua altura, deixando um beijo rápido em sua bochecha. Eu é que não iria arrumar encrenca com criança prestes a dar a hora de dormir, não sou tão maluca a esse ponto.

— Pronto, madame mirim. Ao seu dispor. — pisquei leve pra ele, me levantando e direcionando meu olhar para o pai. — Vamos começar?

— O jantar já está quase chegando, vamos esperar pra comer e depois nós conversamos. Pode ser?

Como se eu tivesse a chance de negar, ou alguma outra opção do que fazer, já que a loirinha não tirava os olhos de mim, parecia até mesmo curiosa com a minha presença ali.

— Desembucha, pirralha. Que que cê tá me olhando? — sentei no sofá da sala, enquanto Stênio buscava um copo de água pra mim.

— Você é namorada do meu pai? — soltou de uma vez, com um dedinho no queixo e uma feição curiosa.

Não evitei soltar uma gargalhada quase que de desespero, como se essa realidade fosse minimamente possível.

Já imaginou? Uma advogada criminalista tendo um relacionamento com um delegado de polícia? A possibilidade de isso dar certo é quase nula.

— Jamais, naniquinha. — mais um dos vários apelidos que inventava para aquele pedaço de gente na tentativa de afastá-la, mas parecia ter o efeito contrário, porque ela se aproximou ainda mais.

— Por que você tá na minha casa a noite então?

A língua dessa criança não deve nem caber na boca de tão grande, não é possível.

— Eu e seu pai estamos trabalhando juntos.

Que eu tinha zero tato com crianças já não era novidade, eu sequer sabia até onde eles entendiam o que os adultos falam.  Jamais irão me ver fazendo vozinha fofa pra falar com criança nem nessa e muito menos em outra realidade, realmente não é pra mim.

— Mas o papai fala que não traz trabalho pra casa. — resmungou parecendo até mesmo brava.

— Ah, mas aí tu briga diretamente com ele, que eu não tenho nada a ver. — levantei a mão implorando por uma trégua daquele relatório que a criança fazia comigo.

Onde já se viu a essa altura do campeonato ser interrogada por uma mini pessoa que nem tamanho tem. É filha do pai dela mesmo, não precisa nem de DNA.

— O que as duas tão fofocando aí? — Stênio apareceu na sala com um copo de água na mão e uma canequinha com o que me pareceu ser suco na outra.

— Ela disse que não é sua namorada, papai. — Cecília respondeu em tom indignado.

Eu tinha que confessar que aquela criaturazinha era engraçada no fim das contas.

— Não somos mesmo, filha. Papai já te falou que ela tá me ajudando em uma coisinha lá do trabalho, lembra?

A criança só deu de ombros, voltando sua atenção para um livrinho de colorir que havia em cima da mesa de centro, ignorando a nossa presença no mesmo cômodo.

Pelo visto, a noite estava só começando.

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