capítulo XXXIV

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Heloísa Sampaio

Saí do apartamento de Stênio querendo me resolver com ele naquele dia, ainda mais depois da noite de sono péssima que eu tinha tido com seu corpo tão longe do meu. Nunca fui uma mulher grudenta, que ama contato, mas já tinha me acostumado em dormir daquele jeito com ele.

E eu ainda me sentia péssima por ter passado a impressão de ainda gostar de Ricardo, de ainda sentir algo por alguém que só fazia parte do meu passado. Com os nervos à flor da pele ontem, não tínhamos conseguido ter uma conversa digna.

Mas ao chegar na delegacia e dar de topo com aquela mulherzinha ordinária encostando a mão nele como se tivessem alguma intimidade, fiquei possessa novamente. Toda a boa vontade que tinha me feito ir até lá pra me resolver com ele, foi embora na mesma intensidade.

Ainda mais tendo que ouvir aquele homem desgraçado fazer piada da situação, tentando me provocar só pra me deixar ainda mais puta com ele.

Desgraçado. — bati a porta da sua sala com toda força do mundo, sabendo que ele deveria estar com um sorrisinho de canto a canto por ter me deixado ainda mais estressada.

E não só estressada, eu estava puta de ciúmes. Mas jamais assumiria isso à ele, nem morta, nem sob tortura.

Me despedi meio por cima de alguns policiais que eu conhecia devido as minhas visitas frequentes à delegacia, mas sem me aprofundar muito ali. Tava cheia de coisas no escritório para resolver, cheias de reuniões e não seria esse trouxa do Stênio que me tiraria dos eixos.

Tinha estacionado meu carro no quarteirão de cima da delegacia, já que o estacionamento estava lotado. Fiz como sempre faço quando entro no carro, deixei minhas coisas no banco do passageiro e ameacei ligar o veículo.

Antes que eu pudesse fazer qualquer movimento, senti uma mão tapar minha boca.

Essa foi a última coisa que eu consegui visualizar, antes de apagar totalmente.


Minha cabeça e meu corpo doíam mais que tudo, parecia que tinha sido apunhalada em cada membro, várias e várias vezes. Fui abrindo meus olhos com dificuldade, tentando entender o que tinha acontecido.

Flashes do momento que eu entrei no meu carro até o meu apagão invadiram minha memória, me fazendo ter o entendimento do que tinha acontecido ali.

Caralho! — passei a mão na minha nuca, sentindo o local doer mais do que deveria ser normal.

Comecei a averiguar o lugar onde eu estava, mas não havia nada ali que pudesse me ajudar a entender o que estava rolando. Eu estava sentada encostada em um pilar dentro de uma sala praticamente vazia, só havia algumas cadeiras velhas e pedaços de madeira pelo local.

A casa parecia ser bem antiga, já que o teto estava quase caindo sob a minha cabeça. Minha respiração estava até mais dificultosa pelo tanto de poeira que havia ali, a ponto de eu não conseguir dar uma fungada mais profunda sem engasgar com o tanto de pó.

— Oi? — falei mais alto, tentando entender se havia mais alguém ali. — Alguém?

Nunca tinha passado pela minha cabeça que um dia eu estaria nessa situação, então sequer podia me preparar para isso. Não sabia nem se eu conseguiria sair viva dali, quem dirá fazer as escolhas certas pro meu próprio bem.

Tentava não me apavorar com aquilo, tentava não me entregar ao medo que insistia em dar as caras. Pensava em Cecília e em como ela tinha sido forte quando a mesma coisa tinha acontecido com ela, ao ponto de esperar pacientemente que nós a encontrássemos.

E eu sentia dentro de mim que deveria fazer a mesma coisa, esperar que o pai dela fosse capaz de me encontrar. Mesmo que ele sequer soubesse que eu estava precisando de ajuda.

Sem contar que ele ainda estava com raiva de mim, isso faria com que ele demorasse ainda mais pra perceber o meu sumiço.

— Boa tarde, doutora Heloísa Sampaio. — uma voz que eu já tinha ouvido antes cortou aquele silêncio que estava no quarto, me obrigando a olhar em sua direção.

Eu queria ter tido o poder de filmar minha reação assim que meu cérebro conseguiu entender de quem se tratava o homem na minha frente, porque seria uma imagem histórica.

— Guilherme?

Sim. O policial que havia ficado de vigia comigo durante a invasão ao galpão abandonado, o mesmo que havia deixado que eu roubasse sua arma e salvasse Cecília de um possível sequestro.

As peças foram se encaixando dentro da minha cabeça com muita facilidade, e eu não conseguia acreditar que tínhamos sido tão ingênuos dessa forma.

— Achou mesmo que ia ser tão fácil roubar a arma de um policial treinado? Que você sozinha conseguiria salvar aquela pirralha insuportável?

Meu sangue ferveu dentro das minhas veias ao notar o desgosto que ele tinha na voz ao falar da loirinha, me fazendo imaginar as barbaridades que ele não tinha lhe dito enquanto ela estava sob seu comando.

— O que você quer? — a raiva era palpável no meu tom de voz, se eu pudesse estrangularia seu pescoço até o final.

— Nós estávamos indo tão bem antes da troca de delegado na nossa delegacia, a gente conseguia soltar quem a gente queria, bastava inventar uma historinha triste para Cristina que ela caía feito uma patinha. — sorriu diabólico, me deixando ainda mais assustada. — Mas foi só esse delegadinho de merda aparecer que as coisas ficaram mais difíceis, já que ele faz questão de averiguar passo a passo o que cada um faz ali dentro.

Ele falava de Stênio com tanta raiva, com tanto rancor que eu sentia todos os pelos do meu corpo se arrepiarem automaticamente em medo do que ele poderia fazer contra o delegado. Naquele estado, ele faria atrocidades sem pensar duas vezes.

— Eu achei que forjar um sequestro com a pirralha dele, faria ele ir embora, abandonar o barco. Mas o desgraçado ficou ainda mais tentado a prender os responsáveis pelo tráfico de crianças... — dessa vez o policial soltou uma gargalhada alta. — Até parece que você sozinha iria desconfiar de tráfico de crianças, doutora Sampaio.

Fiquei sem entender o que ele estava fazendo, me sentindo verdadeiramente confusa com o rumo que aquela conversa estava tomando.

— O que você está dizendo? — minha voz era fraca tanto pela fraqueza que eu sentia no meu corpo, quanto pelo medo que invadia cada poro do meu ser.

— Eu ameacei aquela desgraçada da Carmen a soltar algumas indiretas pra causar essa desconfiança em você, pra você ir correndo pro delegado idiota contar o que tinha descoberto se achando a sabichona. — se aproximou do meu corpo, ajoelhando na minha frente. — Quanto mais eu mantivesse vocês focados em outras coisas, mais chances eu teria de fazer o que eu bem entender dentro daquela delegacia.

Ele falava tudo com tanta tranquilidade que embrulhava meu estômago, havia tanta maldade no seu tom de voz que me fazia ter nojo de respirar o mesmo ar que ele.

— Não tem porra de tráfico nenhum, doutora. Você se achou esperta demais, mas caiu feito uma idiota no nosso plano. 

O quebra-cabeça terminou de se encaixar rapidamente dentro da minha cabeça, deixando minha respiração irregular e meus braços trêmulos. Se não havia tráfico de crianças, a motivação de tudo era algo muito maior.

Eles queriam facilitar os processos, tirar uma pedra do meio do caminho.

Stênio é o alvo deles, não eu e muito menos Cecília.

Agora, nesse momento, ele deve estar chegando com todo o time da polícia, que deve possuir muitos outros traidores, rumo a sua própria derrota.

E eu não poderia fazer nada para ajudá-lo.

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