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Stênio Alencar
Após termos um jantar quase nada tumultuado com Cecília que não parava um segundo de falar, tagarelando sobre qualquer assunto que lhe vinha na cabeça. Finalmente eu tinha conseguido colocá-la para assistir algum desenho no quarto até que adormecesse pelo cansaço.
— Te chamei aqui porque queria te mostrar uma coisa que eu encontrei nos arquivos que você mandou. — sentei na mesa onde Helô já me esperava de forma bem casual.
Aliás, aquela noite estava muito mais casual do que todos os nossos outros encontros desde o dia que nos conhecemos. Nunca imaginei que chegaria ao ponto de jantar junto dela e da minha filha em um dia normal no meu apartamento, parecia até alucinação.
— Deu tempo de olhar tudo? — perguntou, ficando séria de repente de acordo com o que a ocasião pedia.
Heloísa mudava da água para o vinho quando o assunto era trabalho.
— Depois que você foi embora da delegacia eu só consegui pensar nisso, então fiquei o dia todo dando uma olhada em todos esses papéis. — procurei no meio de tantas folhas a que eu queria lhe mostrar. — Tá vendo aqui? Tem um número que ela sempre liga no mesmo dia e horário.
Aquele caso tinha mexido comigo mais do que eu deveria assumir que mexeu, talvez por envolver crianças ou por eu acreditar que fosse algo muito maior do que nós dois pudéssemos imaginar.
Pensei em todos os prós e contras de como minha vida seria afetada se eu aceitasse ajudá-la, mas nada chegava aos pés de pensar no sofrimento dessas crianças ao serem traficadas. A escolha parecia muito óbvia olhando por esse lado.
— Pedi pra descobrirem de quem é o número, mas é de um telefone descartável. — constatei, olhando em sua direção. — Acho que tem alguma coisa muito maior por trás disso, Helô.
— Droga... Eu sabia que a coisa estava ruim, mas não imaginei que fosse tanto. — ela mexeu nos cabelos longos, parecendo verdadeiramente preocupada. — O que a gente faz agora?
Sua preocupação parecia genuína, e eu realmente esperava que fosse, porque o que eu estava prestes a sugerir poderia parecer loucura pra alguém que não estivesse tão envolvido nessa situação.
— Eu tive uma ideia meio maluca, porém, acho que pode funcionar... Mas você vai ter confiar em mim. — comecei meio hesitante sem saber se apesar de ter cara de doida, se ela realmente aceitaria qualquer tramóia que eu inventasse.
— Desembucha, delegado. — brava...
— Antes de acionar a polícia sobre o caso, acho melhor nós tentarmos conseguir alguma prova real sobre o possível tráfico, ou pelo menos entender melhor no que estamos nos metendo. — sugeri, olhando em sua direção. — Envolver a polícia nesse caso sem ter certeza do que está acontecendo pode ser um tiro no pé e sua cliente pode acabar se safando dessa...
Em toda a minha carreira na polícia eu nunca tinha me colocado em perigo dessa forma, sempre agia de acordo com as leis e fazia o meu trabalho junto de uma equipe preparada. Mas não era novidade que esse caso estava mexendo com a minha cabeça a ponto de eu ter atitudes impensadas, que talvez eu me arrependesse depois.
— O que você está me propondo, Stênio?
— Da gente se infiltrar na vida dessa cliente de alguma forma e tentar conseguir alguma informação, nem que seja o nome de alguém. A gente precisa ter por onde começar, não dá pra entregar o caso tão vazio pra delegacia, eles não vão poder fazer nada. — sabia que Heloísa era inteligente o suficiente pra entender o que eu dizia sem precisar de muito mais.
O que eu tenho de cauteloso, ela tem de imprudente. E é justamente essa diferença que faria as coisas funcionarem, onde faltava algo em mim, existia nela e vice-versa.
— Como a gente faria isso? Não é muito perigoso? — pela primeira vez eu vi algo que não fosse a segurança e certeza de tudo dentro dos seus olhos, ela parecia realmente assustada.
— Ninguém me conhece aqui ainda, você já é parte do convívio dela, então a gente pode usar isso ao nosso favor.
— Pula logo pro final, Stênio. Santa lerdeza, homem! — deu um tapinha no meu braço, querendo acelerar a conversa.
— Você vai marcar um jantar com a tal Carmen e vai me apresentar como seu namorado.
Helô deu uma gargalhada ouvindo a minha fala e eu a olhei indignado, sem entender de onde vinha aquela reação extremamente exagerada.
— Ai, bonitinho... — aproximou seu rosto do meu, segurando meu queixo como se eu fosse uma criança. — Se você quer um beijo meu é só pedir, não precisa inventar toda essa historinha de casal feliz.
Seu rosto estava tão próximo do meu que eu conseguia sentir sua respiração quente batendo na minha boca, meu olhar tão hipnotizado preso ao seu como se só existisse nós dois naquele apartamento.
Não conseguia responder nada que fosse coerente porque nada segurava mais minha atenção do que aquela boca tão próxima da minha, aquela maldita boca que soltava as maiores atrocidades com uma leveza ímpar, a boca que me tirava a paz cada vez que ela se aproximava.
— Um test drive... — ouvi ela sussurrar, sem se afastar de mim.
— Que?
Não tive tempo de raciocinar o que estava acontecendo, quando dei por mim sua boca já estava colada na minha com tanta avidez quanto eu poderia imaginar. Seu lábio doce se envolveu com o meu em um beijo lento, sensual e muito gostoso.
Subi uma de minhas mãos até seu cabelo, puxando-a para ainda mais perto de mim. Já que tinha chutado o balde, que chutasse de acordo.
Imagina se eu iria ficar ouvindo resmungo dela depois falando que não foi bom, me chamando de frouxo e tudo que eu sei muito bem que ela vai tentar dizer depois que se afastar. Conheço a peça!
Não sei explicar aquele beijo, só sei que realmente era aquele beijo. Nossas bocas se conectaram instantaneamente, como se soubessem o exato caminho a percorrer.
Só pode ser maldição um beijo bom desses ser logo com essa advogadinha, só pode!
Tudo que ela tem de amarga nas palavras e nas provocações, tem de doce nessa boca. E isso era terrível.
Terrível pra mim, claro.
Nos afastamos lentamente, quase que sem querer se afastar. Talvez ainda tentando processar o que tinha acabado de acontecer, numa tentativa de assimilação.
Helô até tentou parecer isenta ao beijo e tudo que tinha sentido, mas sua pupila dilatada demonstrava que a coisa estava bem balanceada dos dois lados. Não tinha sido só eu que ficou mexido com esse maldito beijo, mas ela também teria suas noites atormentadas por ele.
— Um teste. — ela sussurrou com o sotaque carioca ainda mais evidente. — Só pra ver se você conseguiria se passar por meu namorado.
Não sei a quem ela queria enganar com aquela historinha, mas eu que não seria maluco de contestar.
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Reverso
FanfictionComo seria se tudo fosse ao contrário? Uma história fictícia | Steloisa.