Eu não tinha ideia de para onde ir agora. Eu só queria tomar o máximo de distância do galpão. Não, eu queria tomar o máximo de distância de Flynt.
Fui me aproximando da parte mais central da cidade. Luzes, sons altos e uma grande movimentação dominavam o ambiente. As pessoas passavam rindo por mim, alheias ao fato de que viviam cercadas por demônios que espreitavam a sua próxima vítima.
Eu não podia acreditar no que Flynt fizera. Ele não só traiu minha confiança como também enganou aqueles que acreditaram nele. Eu senti um peso no estômago, até porque eu aproveitei esse dinheiro.
Continuei andando, atravessei a Times Square, um lugar que sempre quis visitar à noite, mas nunca tive a oportunidade, totalmente alheia à sua beleza e magnificência.
Segui caminhando até começar a me afastar da parte central da cidade, e também de Flynt. Logo estava em uma rua mais simples e sem todo aquele luxo que se via aos arredores da Times Square, mas ainda era uma área comercial.
Entrei em um hotel de médio porte. A recepcionista, uma senhora de cinquenta e poucos anos, voltou seu olhar para mim. Me aproximei do balcão.
_Vocês têm um quarto vago? – Perguntei. _O mais baratinho. – Emendei baixinho.
_Claro. – Ela disse e apanhou uma chave, me observando por cima dos óculos de grau.
_E vocês não estão precisando de alguém?
Suas sobrancelhas se ergueram
_Na verdade, estamos precisando de um faxineiro. Está precisando de emprego, menina?
_Sim.
_Podemos ver isso, mas o salário não é tão alto.
_Não estou precisando necessariamente de dinheiro. Só comida e hospedagem.
Seus olhos me analisaram com curiosidade.
_O que te trouxe aqui, menina? – Ela perguntou em um tom maternal que chegou a mexer comigo. Então respondi com sinceridade.
_Minha vida deu uma guinada louca nos últimos tempos. Eu estava morando com... um amigo, mas descobri que ele não era quem eu pensava.
_Ele tinha outra?
_O quê? Não. Quem dera fosse isso.
_Então ele matou alguém. – Ela se aproximou de mim em tom conspiratório.
_Não! – Exclamei. _Isso... isso seria muito pior. Aconteceu que eu descobri que seu caráter é questionável.
Ela fez um gesto de desprezo com a mão.
_Querida, achar alguém que só tenha o caráter questionável por aqui, ainda mais hoje em dia, é sorte.
Balancei a cabeça veementemente.
_Não, não pra mim. Isso é inaceitável.
Ela deu de ombros.
_Você se impressionaria com o número e causa de pessoas corrompidas.
Suspirei.
_Mas você não quer ir para o seu quarto? – Ela perguntou.
_Quanto custa?
_Ah, não! Vemos isso amanhã, menina.
Apenas concordei e segui para o meu quarto conforme a senhora indicou.
Era um quarto simples, pequeno, mas limpo, organizado e confortável. Eu não podia esperar coisa melhor. Era melhor que o galpão e que o meu antigo apartamento.
Larguei minha mochila, tomei um banho rápido e me joguei na cama.
Minha única ligação com Flynt era o cristal negro pendurado em meu pescoço, e por ironia, a única coisa da qual não podia me livrar. Sem o cristal Bridget me encontraria, sem o cristal os pesadelos voltariam, sem o cristal eu seria fraca.
Eu estava tão cansada que não levantei mais.
Pela manhã, organizei o quarto e segui até a recepção.
A senhora com quem conversei à noite estava assumindo o posto novamente, o que me faz crer que o negócio era da família, ninguém trabalharia tanto tempo assim. Quer dizer, existiam leis trabalhistas que proibiam esse tipo de coisa.
Tentei pagar-lhe pela noite, mas ela se recusou de forma enérgica.
_Não, mesmo. Aliás, já está tudo certo para o seu emprego aqui. Você pega às nove e larga às cinco da tarde. Tem intervalo de uma hora para o almoço ao meio dia. Retorna à uma hora da tarde. Você vai limpar e arrumar os quartos dos dois andares de cima e depois o salão do café da manhã.
Eu apenas concordei com a cabeça enquanto acompanhava as instruções. Parecia bastante razoável.
_Você terá estadia de graça e café da manhã incluso. Na verdade, será pago com o seu trabalho. Terá também vinte dólares ao dia. Tirando o seu dia de folga na semana, que fica à sua escolha, darão em média 560 dólares ao mês. Não é muito.
_Não me importo com o dinheiro. – Eu disse dando de ombros, embora me parecesse uma oferta boa demais.
_Bom, como não estamos bancando as suas três refeições diárias, apenas o café da manhã que é servido aos hospedes e o almoço oferecido aos empregados, você vai precisar de dinheiro para comer à noite. Também precisa de dinheiro para despesas extras e para guardar em caso de emergência. Tem um restaurante baratinho a uma quadra daqui, onde você pode jantar.
_Então eu pego daqui a meia hora? – Voltei aos detalhes do emprego.
_Sim, mas precisamos acertar o seu contrato primeiro. – Eu entendi a entonação que ela deu à palavra. Meu contrato não seria oficial. Também pudera, pela quantia que eu receberia.
_Separei um uniforme para você. – Ela disse e me entregou um pacote. _No segundo andar está Audrey, ela vai te acompanhar hoje e te ajudar com o que precisar.
Agradeci e fui ao banheiro trocar de roupa. Tive vontade de jogar o uniforme no vaso e dar a descarga ao descobrir um macacão verde escuro, um tom mais escuro que o que eu usava para trabalhar em Boston. No entanto, respirei fundo e me controlei. Precisava do emprego.
Encontrei Audrey, que tinha trinta e poucos anos. Ela foi me passando instruções e dicas, as quais fui seguindo.
Não podia dizer que o trabalho era o melhor que existia, mas era infinitamente melhor do que eu esperava. E o principal, era um trabalho honesto.
Quando chegou a noite eu estava exausta, e teria dormido muito bem não fosse o meu pensamento ter voado para Flynt. Lembrei imediatamente de nossos beijos, do treinamento, de cada segundo que passamos juntos.
A atenção, a preocupação e até o carinho com que Flynt me tratava. Seu olhar, seu rosto, seus olhos se puxando nos cantos ao sorrir... Tudo isso voltava à minha mente.
Mas eu não iria voltar. Não era nem por orgulho, ao contrário. Se fosse orgulho eu já estaria batendo nas portas duplas do galpão, porque eu não tinha muito disso em mim. Era mais que isso, era revolta com o que Flynt fizera. Era a necessidade de um tempo.
Eu não sabia quanto tempo eu ia levar, mas no fim eu tomaria a decisão certa. Eu decidiria sobre Flynt.

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SOMBRAS I
FantasíaVivendo sozinha em Boston, tentando fazer uma vida para si mesma, ela tenta ignorar o frio na espinha e o terror cada vez que cai na inconsciência: Milla está sendo atormentada por pesadelos cada vez mais recorrentes, e cada vez mais reais. Sua vid...