Despertei com uma claridade penetrando pela janela aberta do meu quarto. Já era dia, e alguns suaves raios solares iluminavam boa parte do espaço. Era como se dissessem "Bom dia" e me lembrassem que eu ainda havia o que fazer.
Eu estava entre dois braços quentes, e a minha cabeça repousava em um peito que descia e subia vagarosamente. Inspirei um delicioso aroma que me lembrava uma colina verde, um campo aberto e liberdade. Hill. O nome brincou em minha mente e eu sorri involuntariamente.
Eu devia estar no céu.
Abri meus olhos lentamente e me deparei com uma camiseta preta. Levantei minha cabeça para mirar o dono dela. Era um anjo.
Eu realmente estou no paraíso. Pensei.
Alguma coisa tremulou em minha memória, mas a afastei. Ao invés disso, passei a analisar o anjo sobre o qual eu estava deitada.
Seu cabelo era preto e brilhante, e a pele clara como a minha, tão clara quanto uma folha de papel. O seu rosto angelical era um dos mais lindos que eu já tivera o prazer de apreciar, e seus lábios eram cheios o suficiente para me fazerem desejar beijá-lo. Talvez eu já tivesse feito isso.
Franzi a testa expulsando uma lembrança que queria voltar e balancei a cabeça. Primeiro eu precisava apreciar esse ser divino sob mim. Havia uma pequena ruga entre suas sobrancelhas, esta que tremeu um pouquinho em seu lugar, e então se desfez, fazendo com que o rosto do anjo voltasse a ser tão liso quanto mármore novamente. Sua respiração era lenta e delicada, e todo o seu ser transmitia calma. Eu poderia ficar ali para sempre.
Mas você não pode. O pensamento invadiu a minha mente e me fez franzir a testa mais uma vez. A ruguinha entre as sobrancelhas do anjo se refez, e segurei o impulso de beijá-la para fazê-la desaparecer e espantar para longe qualquer coisa que estivesse atrapalhando o sono daquela perfeita criatura. Algo me dizia que eu tinha algo a mais para fazer, além de observar a bela obra prima que se encontrava diante de mim.
De uma vez só, tudo o que eu estava espantando da minha mente voltou, como um sonho ruim que deveria permanecer esquecido. Imagens sangrentas giravam em minha mente. Havia sangue em cada lembrança que fosse. E haviam corpos. Dois. Uma noiva decapitada e um noivo... que era o meu pai, morto.
_Pai! – Deixei a palavra se formar em minha boca e sair apenas um sopro, sem som. Foi nesse momento que me levantei em um impulso, e parei de joelhos na cama.
Acabei acordando o anjo com o meu movimento brusco, que piscou os olhos, se apoiou nas mãos e se sentou na cama, encostado à cabeceira, esfregando os olhos. Mas ele não é um anjo miraculoso. Pensei. É só o Flynt.
_Milla? – Ele perguntou com a sua voz aveludada e um pouco rouca do sono, enquanto, de joelhos sobre a cama, eu o encarava com olhos mais abertos que o normal. _Tudo bem?
_Meu pai morreu. – Deixei escapar em um único fôlego. Era a primeira vez que eu verbalizava aquilo, e as palavras tinham um gosto estranho em minha boca. Elas eram vazias, como se não tivessem significado, porque talvez a ideia fosse absurda demais para ter uma importância verdadeira, absurda demais para que fosse verdade.
Flynt me encarou de volta, com a ruga entre as sobrancelhas mais acentuada. Não havia nada divertido em seu rosto, não havia brilho de malícia algum em seus olhos, e isso me desapontou um pouco. Seu ar era tão sério e alerta, que fiquei imaginando se ele esperava que eu fizesse alguma coisa louca como correr até a janela e pular lá pra baixo, ou tentar sufocá-lo com os travesseiros.
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SOMBRAS I
FantasiVivendo sozinha em Boston, tentando fazer uma vida para si mesma, ela tenta ignorar o frio na espinha e o terror cada vez que cai na inconsciência: Milla está sendo atormentada por pesadelos cada vez mais recorrentes, e cada vez mais reais. Sua vid...