Capítulo 62

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Ainda era noite quando acordei de meu sono conturbado. Deitada entre os lençóis revirados e ainda vestida com meu traje elegante que já estava amarrotado contra meu corpo.

Me levanto lentamente contra a cama, a luz da lua entrando pela janela da varanda entreaberta ilumina o quarto silencioso, com cuidado coloco os pés descalços no chão e caminho até a escrivaninha onde o bolo comprado durante a manhã ainda jazia sobre ela.

Rezei interiormente para que não estivesse com um gosto estranho após ficar jogado por horas a fio dentro da sacola.

Seguro a alça da sacola na mão e me viro novamente, andando calmamente até a porta destrancada do quarto e a abrindo, o corredor do lado de fora está vazio e silencioso, apenas a fraca luz das velas ilumina o sinuoso caminho.

Caminho com passos silenciosos até a escadaria, os degraus frios tocam a sola de meus pés e um calafrio sobe por minha espinha, a sala está vazia, as poltronas e sofás sem quaisquer vestígios de presença, olho para a porta do lado esquerdo que presumo ser a cozinha, decididamente caminho até ela e entro na sala escura, uma mesa de mármore está no centro e diversos utensílios pendurados em ganchos sobre a pia larga.

Coloco a sacola com o bolo sobre a mesa e vasculho entre os talheres nas gavetas em busca de uma faca e um prato, agarrando o cabo de prata da faca volto para a mesa e desembrulho o bolo de sua embalagem elaborada com fitas e corto dois pedaços grossos pra mim, os coloco no prato de porcelana achado em uma das gavetas da esquerda.

Com um breve aceno de mão despreocupado as coisas acima da mesa desaparecem, os talheres usados foram colocados de volta nas gavetas limpos, a embalagem fora jogada no lixo próximo a porta e o restante do bolo foi colocado de volta na escrivaninha de meu quarto.

Segurando meu prato de porcelana e um garfo caminho até um caminho estreito que levava ao jardim que ficava aos fundos, meus pés descalços tocam a grama esverdeada e úmida a medida em que caminho, arbustos farfalham com o vento e um bocado de diversas flores brilhantes e coloridas são iluminadas pela lua.

O vento frio da madrugada se choca contra meu rosto e junto a ele um breve e baixo som abafado surge em meus ouvidos. Por um momento paro no centro do jardim antes de caminhar em direção ao som, atrás de uma treliça de begônias rosas há um banco feito de metal e sentado nele está um macho de longos cabelos ruivos e de costas curvadas.

Não há hesitação quando caminho até ele e me senti ao seu lado, o macho continua curvado e parece não notar minha presença, aproveitando de tal fato observo sua feição bela e melancólica.

Pele dourada banhada pela lua, cabelos flamejantes penteados e soltos ao vento, lábios finos e avermelhados franzidos, olhos fechados e manchas finas de lágrimas nas bochechas.

Lucien Vanserra era uma beleza triste.

Não continuo o observando e me viro novamente para aproveitar os pedaços de bolo, cortando a massa com a ponta do garfo e levando até minha boca, o sabor amargo do chocolate enche minha boca com um toque picante de canela. Seguro meu próprio suspiro de satisfação e corto mais um pedaço levando o recheio vermelho até minha boca, o gosto doce de morango com amêndoa enche meu palato e desliza por minha garganta seca, a ponta de meus pés se curvam contra a grama em satisfação.

Noto pelo canto dos olhos quando o macho ruivo ergue a cabeça e se vira em minha direção, sua pele empalideceu rapidamente e pude notar como ele resistiu ao desejo de rapidamente se levantar e fugir.

— Não consegue dormir? — Questiono com um tom de voz baixo enquanto dava outra mordida no pedaço do bolo.

Lucien parece se questionar interiormente antes de responder com a voz rouca e entrecortada.

— Sim. — concorda o ruivo antes de hesitar sua fala seguinte. — Não... notei quando se sentou aqui.

Um zumbido é minha única resposta antes de falar com um tom quase irônico.

— Seria impressionante se o fizesse. Poucas pessoas conseguem essa proeza.

Lucien não responde mais nada, seu rosto se ergue para cima e ele observa a lua brilhante no céu, as manchas de lágrimas em seu rosto que já haviam secado são tingidas com mais uma camada de umidade quando ele começa a chorar silenciosamente.

O macho parece estar ciente demais de minha presença e faz a menção de se levantar enquanto enxuga suas lágrimas com a manga de sua blusa branca.

— Eu estou indo –

Lucien não termina sua fala quando o corto suavemente e digo algo que nunca disse para mais ninguém em quase trinta anos.

— Quer um pedaço?

O ruivo parece travar por algum momento, os olhos piscando estupidamente enquanto ele abre os lábios secos.

— O que? — Pergunta novamente o macho, um suspiro sai por meus lábios quando cortou um pedaço do bolo e levo até os lábios dele.

— Coma. — Digo enquanto cutuco a frente de seus lábios com o garfo, Lucien lentamente abre a boca e com cuidado para não acabar perfurando sua garganta coloco o bolo em sua língua.

Lucien fecha a boca e eu retiro o garfo limpo de sua boca, mastigando lentamente ele não nota enquanto eu sutilmente o coloco sentado novamente no banco e volto a começar a alimentá-lo.

Um pedaço, dois, três, quatro...isso se segue até o prato estar totalmente limpo e Lucien de estômago cheio.

Nunca fui boa em confortar as pessoas que não conheço, entretanto, eu faria algum esforço com Lucien.

Levemente me levando do banco e com a ponta dos dedos seguro o rosto de Lucien em minha palma, suavemente por medo de acabar perfurando sua pele com minhas  unhas afiadas limpo suas manchas de lágrimas em sua pele dourada.

Lucien estremece por um momento com o toque frio e levanta o rosto bruscamente em minha direção, um tom de repreensão toma conta da minha voz quando seguro seu rosto com um pouco de força.

— Vai perder seu outro olho se você se mover desde jeito novamente. — Digo enquanto termino de limpar os rastros secos em seu rosto e libero sua face de minha mão.

— Você...— Lucien inicia sua pergunta com a voz rouca, ligeiramente atordoado enquanto me observa dar as costas para ele e caminhar de volta a casa.

— Não se preocupe com bobagens, eu lidarei com todo o resto, apenas se preocupe em sobreviver. — Minha frase soa ao vento da madrugada. —Vá dormir Lucien, o sol está prá nascer em breve.

Não preciso me virar para saber que Lucien havia se virado para observar o céu escuro que começava a clarear.

Caminho pelos corredores vazios até meu quarto e por trás da porta escuro os passos de Lucien enquanto ele caminhava até sei próprio quarto.

De uma maneira sutil percebo como seus passos são mais leves do que antes, como se um fardo tivesse sido tirado de suas costas.

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