Eram quase vinte e duas horas. Minha família havia ido para o sítio da avó no interior. Eu fiquei de ir assim que saísse do trabalho, mas obviamente não pretendia fazer isso. Já havia planejado meu último dia há pelo menos um mês e era chegada a hora. Tudo o que eu precisava estava pronto no quartinho de ferramentas e, embora ainda me sentisse desconfortável com a ideia de ser fritado em segundos, era a maneira mais rápida, indolor e garantida de morrer. Sim, eu passei meses pesquisando e sabia que a probabilidade era de cem por cento, sem pequenas chances de sobrevivência, o que poderia acarretar muitos problemas.
O que eu não contava era que havia alguém inesperado zelando por mim.
Ah, que mal educado eu sou. Não me apresentei ainda. Olá, eu sou Alexanderson, assim, tudo junto mesmo. Mas muitos me chamam de Alex, outros de Anderson e poucos de Alê.
Você?
Bem, pode me chamar como achar melhor, conforme for se acostumando comigo. Uma coisa é certa, assim como eu, você não está só. Mas isso é uma outra história.
Como eu ia dizendo, estava tudo pronto para o meu último dia de vida. Sexta-feira, 13 de outubro de 2017. Por que esse dia? Não sei ao certo, mas acho que a crendice de que é um dia de azar e amaldiçoado, ou dia que a superstição chama de dia em que há um certo quê de sobrenatural. Seja o que for, eu imaginei que seria mesmo muito mais dramático morrer em um dia considerado como um dia de azar. Para você ter uma ideia, minha família acredita tanto nessas coisas que viajaram para o sítio da minha avó Benedita na tarde da quinta-feira, tudo para evitar a estrada numa sexta-feira treze.
Na noite de quarta-feira eu convidei todos para ir ao cinema para ver ao filme Blade Runner 2049 antes que ele saísse de cartaz. Meu pai me obrigou a ver o primeiro filme de 1982, Blade Runner – o caçador de androides. Acredite ou não, eu gostei do filme, o mais engraçado é que mesmo sendo feito em 1982, ele se passava no futuro, no ano de 2019, e como estavamos em 2017, foi engraçado ver como os cineastas imaginavam o nosso futuro próximo. O mais impressionante é que agora realmente estamos mais próximos da construção de androides, eu compartilho da visão pessimista daquele diretor e ter visto ao filme me ajudou a entender o novo filme.
Ao sairmos do cinema minha família foi viajar, me despedi de todos de maneira carinhosa para além do normal e disse "Adeus". Minha mãe foi a que mais estranhou meu comportamento, me perguntando se estava tudo bem. Eu sorri e disse que sentiria saudades, ela me perguntou se eu estava doente, afinal, sábado estaria com eles novamente. Pelo menos era isso o que ela pensava.
A sexta-feira começou como qualquer outro dia e no meu trabalho, estava mais tranquilo que o normal. Eu trabalhava como operador de call center, setor de atendimento ao cliente. Um dos piores lugares para se trabalhar, afinal, vocês não têm ideia de quão mal educado um cliente pode ser, especialmente se o serviço oferecido não funciona bem, ou se ele foi enganado pelo operador de vendas. Os gritos e xingamentos... Há quem se acostume, eu nunca me acostumei.
Era o meu último dia de trabalho, já que pedi demissão e estava cumprindo os trinta dias de aviso prévio. Meu chefe quis me dispensar do aviso, mas fiz questão de trabalhar. Afinal, se aceitasse a dispensa, precisaria inventar uma desculpa para explicar à minha família o motivo de eu ter largado o emprego. Além disso, eu queria curtir e me despedir de cada bom amigo que tive ao longo dos três anos de trabalho e fiz isso pagando duas rodadas de bebidas no Leãozinho, uma padaria com cara boteco chique que ficava próximo do trabalho. Não bebi muito. Queria estar sóbrio para fazer as coisas direito mais tarde.
Não sei ao certo o motivo, mas a alegria do pessoal e aquele monte de gente se abraçando e rindo, me dando os parabéns pela coragem de pedir demissão e buscar novos ares. As estórias contadas como se fossemos pessoas velhas relembrando o passado me deixeram emocionado e, por um breve momento, me fez pensar que a vida não era tão ruim assim. Sacudi a cabeça e voltei a focar no que viria depois. Aos poucos um a um se despediu e fiquei só para o último drinque. Paguei a conta, peguei o metrô a caminho de casa.
O bom de utilizar o metrô fora do horário de pico é que não há tanta gente. O barulho e a movimentação são bem menores. É mais fácil observar as pessoas e imaginar como é a vida delas ou o que estão sentindo.
Uma moça à minha direita lia Cem anos de solidão, nunca li este livro, embora falassem tão bem dele, o título me deixava muito triste. Cem anos de solidão, que horror, eu não aguentei nem dez, quem dirá cem. À minha esquerda uma senhora rezava o terço. Nunca entendi tamanha tolice, como ficar repetindo mecanicamente uma oração poderia fazer diferença na vida de alguém. Eu mesmo fui obrigado a repetir essas orações muitas vezes. Minha mãe dizia que rezar o terço alimentava o espírito e nos dava força. A mim só deu desânimo e algumas vezes raiva de ter que repetir, e repetir, e repetir. Quando ela percebeu que eu não ficava satisfeito em estar ali, disse que não precisava mais participar se era para ser de mal grado. Fiquei feliz em ouvir aquilo. Em outro banco, um senhor roncava feito um bulldog velho. O restante das outras pessoas, cerca de seis, mexiam no celular. Saltei na minha estação e andei, minha casa ficava a quatro quadras dali.
Caminhei devagar sem pensar muito, se existe uma coisa que não sou, é ansioso. A vizinhança estava quieta. Como na maioria das vezes, às sextas-feiras, a maioria das famílias do bairro sai para viajar ou visitar seus familiares, os poucos que ficam, fazem um churrasco ou alguma atividade em seus quintais.
Cheguei em casa, coloquei minha mochila no quarto, colei o recado na geladeira e subi para a varanda da casa. Lá em cima há uma área com cozinha e churrasqueira e também o quartinho de ferramentas. Acendi a luz, peguei quatro vergalhões de aço de aproximadamente dois metros e meio e a máquina de solda. Uni os vergalhões de maneira a ficarem bastantes firmes. Agora, emendados, atingiam pelo menos sete metros.
Enquanto eu soldava os vergalhões, notei que o clima frio se intensificou, um vento gelado sacudia a plantação que formava a paisagem do fundo da varanda, por onde passavam as linhas de transmissão. Nuvens carregadas estavam chegando. Os primeiros pingos fortes começaram a cair.
Caminhei até o parapeito e fui empurrando o vergalhão de maneira que ele não envergasse para baixo e eu conseguisse encostá-lo na rede elétrica de alta tensão. A chuva agora era uma grande amiga, pensei, aumentaria as chances de sucesso do meu plano. Faltava pouco e o balançar da ponta do vergalhão já próximo ao fio, não me deixava ver o quanto faltava. Firmei a base na minha cintura, estiquei o braço e dei um tranco para cima, imitando o movimento de uma pescaria. Foi tudo muito rápido. Um clarão, um estrondo gigantesco e depois... Escuridão!
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Meu último dia de vida.
Mystery / ThrillerAlexanderson passou um mês planejando o último dia de sua vida. Há meses havia deixado escrito em várias cartas e um diário, enterrados no quintal, suas percepções sobre a vida, suas dores, os amores não vividos. No último dia de sua vida, deixou um...