3. À DERIVA

21 2 0
                                    

Horas mais tarde, estou deitado na cama fitando o teto tomado por teias de aranhas, me perguntando pela milionésima vez o que fiz para merecer tudo isso.

Sinto como se estivesse à deriva em meio a todos os eventos que sucederam o acidente. Sei apenas que, por uma graça maior, fui deixado vivo enquanto meu pai e minha mãe foram tomados deste mundo, e talvez — talvez — a morte tenha cometido um enorme erro ao fazer isso. A única coisa que me motiva a cultivar umas poucas sementes de determinação é a certeza de que é isso o que meus pais desejariam que eu fizesse. Acredito que é o que qualquer pai e mãe desejaria por natureza.

Rolo para o lado e puxo o travesseiro desnutrido sobre o rosto, tentando fazer meu cérebro desligar. Preciso dormir, mas meu subconsciente se compromete em me mostrar uma enxurrada de imagens desagradáveis, a maioria relacionada a meu último dia normal.

Meu último dia quase normal.

Não contei a ninguém sobre o que vi no meio da rua em meus últimos instantes de lucidez. Nem à polícia, nem às Pessoas de Jaleco Branco, muito menos aos meus tios. Não achei que valia a pena. Já tinha sido difícil conseguir me lembrar daqueles segundos finais e eu não queria que ninguém supusesse que minhas memórias envolvendo grãos dispersos se unindo para materializar uma pessoa haviam sido afetadas pela concussão.

Quando acordei no hospital, o lençol branco de minha cama e as paredes brancas do quarto me fizeram achar que eu estava cercado por um nevoeiro sólido. Elevei os olhos para o alto em busca de uma abertura naquele mundo descorado, mas o teto era igualmente branco. Entrei em pânico e acidentalmente pressionei o botão da chamada de enfermagem. Um enfermeiro veio depressa e ajudou a me acalmar.

Eu não me lembrava do que tinha acontecido, não me lembrava de absolutamente nada. Foi a Dra. Andrea que me contou do acidente, e minhas lembranças foram chegando aos poucos com o passar dos dias, junto com a dor e o luto. E cá estou.

Com a minha falta de informações relevantes, a polícia concluiu que o acidente não passou de uma tragédia imprevisível, e as Pessoas de Jaleco Branco trataram de fazer seu trabalho sem levantar questionamentos sobre o ocorrido.

"Você deve ficar atento ao seu comportamento nos próximos meses", avisou-me o psicoterapeuta que me atendeu no hospital. "Tudo vai mudar a partir de agora, Isaac. Nada será como antes".

Quando se está sentado frente a um psicoterapeuta numa saleta branca de hospital, é fácil imaginar que você vai conseguir sair do fundo do poço se tiver um pouco de perseverança. Mas aqui fora, longe daquelas paredes brancas, a realidade se mostra tão cruel que não parece possível manter as esperanças.

O psicoterapeuta estava certo. Não somente a respeito do meu estado de saúde, mas num contexto geral. Porque o tudo que estava prestes a mudar também é o nada que jamais será como antes.

Desde aquela manhã, meus sonhos nunca mais me levaram de volta ao Bosque de Verão — ou de Inverno, nem sei mais como chamá-lo. Tenho tido pesadelos constantes, mas nenhum deles é importante.

Sinto falta do bosque.

Minha perspectiva externa dele mudou desde então. Quando sonhava com aquele lugar, nada mais tinha importância para mim e eu esquecia que era Isaac Lane. Lá eu era outra pessoa, alguém que acreditava no impossível. Alguém que acreditava que podia viver uma vida secreta dentro de um sonho. Já aqui, no coração gelado deste casarão maculado, não posso ser ninguém além de Isaac Lane. O Isaac que não acredita em nada que não possa tocar ou sentir. O Isaac órfão. O único Isaac que eu não quero e nunca quis ser.

É uma pena que minha última visita ao Bosque de Verão tenha sido tão estranha. Ainda tento entender: meu pai disse que o inverno significava que algo estava prestes a mudar, e se ele estava se referindo a isso, então acertou na mosca.

Neblina - Livro IOnde histórias criam vida. Descubra agora