26. ENTELÉQUIA

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Eu devia ter imaginado que acabaria assim — sozinho, vagando sem norte por um arvoredo invernal —, exatamente como começou. Porque, no fim, tudo volta a sua origem. Os ponteiros do relógio avançam para depois voltarem à posição original. É inevitável.

A determinado ponto de minha perambulação inútil, o chão começa a se inclinar, alertando-me de que devo estar me aproximando da beirada do platô. Neve farelenta se acumula em meu cabelo e em minhas sobrancelhas. Meu corpo todo treme. A cada respiração, nuvens de vapor se erguem em tufos diante de mim, misturando-se à neblina que abraça as árvores escuras. Estou com tanto frio que não é exagero dizer que eu poderia morrer a qualquer minuto. Mas quem se importa? Certamente não os meus pais. O que Joshua disse? Que eles estão descansando com Elim. Não estão mais comigo. Não estão vendo meu sufoco, não me assistiram passar por maus bocados. E agora Nim também não está mais comigo. É desconcertante o quanto esse fato machuca — machuca quase na mesma intensidade que a perda de meus pais. Porque ele escolheu me deixar. Mentiu para mim, mentiu para seus pais... para todo mundo.

Estava debaixo do seu nariz o tempo todo.

Sim, é verdade. Eu fui tolo por não atentar para minhas desconfianças, por mais tênues que elas pudessem aparentar ser. O segredo de Nim sempre esteve à espreita, recoberto apenas por um véu de neblina que ele mesmo estendeu. Mas a hora da verdade chegou; os segredos se condensaram em orvalho e nunca mais poderão ser ocultados de novo.

Mas e quanto àquela história de que uma entrada para o Mundo Sombrio nunca tinha lhe aparecido? Nim disse que inábeis não podem ir ao Mundo Sombrio cumprir a missão a menos que mentorem um neófito e o ajudem a descobrir seus possíveis dons, mas se Nim não é um inábil, o que impede que uma entrada apareça para ele? Ele pode ter mentido sobre isso também, mas então por qual razão me mentorar? E por que — por quê? — se entregar a Yann tão facilmente?

Acho que não consigo suportar mais uma leva de interrogações e incertezas. É demais para uma pessoa.

O toldo natural mascara o céu deserto, o que só serve para me deixar mais tenso e claustrofóbico. O arvoredo é um matiz de verdes e marrons escuros contra o branco-leite cremoso. Meus dedos mal conseguem se fechar em punhos em volta do arco, e respirar me provoca pontadas de dor.

O que está fazendo? O que está fazendo?

Não sei responder a isso. Não estou agindo racionalmente. Estou procurando alguma coisa ou fugindo de alguma coisa? Não tenho certeza. Pode ser que eu esteja tendo um surto psicótico. Eu saberia se estivesse?

Algo me paralisa no lugar. Uma sensação. Na contramão do frio inflexível, um calor reconfortante floresce em meu peito, como se uma pequena fogueira tivesse sido acendida dentro de minha caixa torácica.

A sensação me atordoa. De onde está vindo esse calor?

Confuso, olho ao redor, tentando entender o que pode ter causado isso, mas só o que vejo são as árvores. Árvores e mais árvores. Não há nem ao menos uma ave solitária por perto. O silêncio imperaria não fossem o sussurro constante dos flocos de neve caindo e as vozes em minha cabeça.

É tudo culpa sua.

Devia ter me dado ouvidos.

Agora não estaria sozinho e perdido.

— Essa parece ser a minha sina — arquejo entre um sorriso sombrio e o bater de meus dentes.

Talvez eu esteja delirando.

Desfiro mais um passo, depois outro, e assim por diante. O calor misterioso me acompanha, crescendo lentamente em meu peito; imaginário ou não, ele pode me dar um tempo extra antes que a hipotermia me ceife a vida. A não ser, é claro, que esse calor já seja um sinal da aproximação da morte — um último acesso de prazer antes do eterno nada. Porque é nisso que acredito, é nisso que fui incentivado a acreditar no decorrer de minha vida: que a morte é um grande nada, o vazio onde todos perdem suas consciências, vontades, lembranças; o vazio onde tudo e todos se perdem, ponto.

Neblina - Livro IOnde histórias criam vida. Descubra agora