20. NUVENS FURIOSAS

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Vejo os raios solares atravessando a superfície diáfana do rio e ao mesmo tempo sendo refletidos por ela, uma troca justa — água por luz, luz por água. Vejo como o chão em volta escorre na direção da água, a grama enfeitando a borda do barranco como um tapete de plumas esverdeadas. E vejo, ao dedicar um olhar mais alongado ao panorama, uma cadeia de montanhas se projetando da porção de terra do outro lado do rio, cuja largura deve medir cerca de três quilômetros. Com variações que ondulam a verticalidade, as montanhas parecem emergir de uma cerração baixa que rodeia o barranco do lado de lá; as mais altas chegam a trespassar as nuvens.

Do mesmo jeito que eu me lembrava.

Enquanto espero meu corpo se reajustar, fico observando o quadro que há muito foi carimbado em meu cérebro. Eu poderia dizer isso, que mais uma vez estou olhando para um quadro, uma imagem congelada, mas o rio se mantém em movimento, correndo para o sul, e os ventos matutinos somados à friagem trazida pela chuva agitam as folhas nas árvores como uma mãe que mexe nos filhos para acordá-los, alegando que um novo dia se iniciou. Há, ainda, uma vibração sonora que permeia por todo o bosque, como se a própria vida animal estivesse pedindo para ser notada.

Um melro, com suas penas negras brilhando como veludo sob a luz do sol, surge de dentro da floresta. Suas asas cortam o ar com uma precisão graciosa conforme ele plana com elegância até a margem do rio e pousa delicadamente em uma pedra musgosa à beira da água. Ele inclina a cabeça de maneira inquisitiva e baixa o bico até a superfície cintilante do rio, bebendo algumas gotículas de água. A cada gole, suas penas parecem brilhar ainda mais ao sol. Ele levanta a cabeça, como que saboreando o frescor revigorante da água pura, e repete esse ritual mais algumas vezes. Ao se dar por satisfeito, ele sacode suavemente as asas e deixa escapar um suave trinado de satisfação. Com um último olhar para o rio, o melro ergue-se no ar novamente, batendo as asas rumo à profundidade da floresta.

Um farfalhar atrás de mim me faz virar a cabeça, e meus olhos se detêm num cervo magricela.

Ele simplesmente está lá, leniente, fitando-me de longe sem expressão, o par de chifres pontudos formando uma minguante e uma crescente lunar. Tenho a impressão de haver algo oblíquo nele, algo fora do padrão, mas antes que consiga descobrir o que é, ele se vira e volta por onde veio. Galhos estalam e se partem conforme ele se afasta. Creck, creck, creck.

Com a respiração mais controlada e os músculos mais relaxados, ponho-me de pé. Olho para as árvores, depois de novo para o rio.

Estou no Bosque de Verão, lembro a mim mesmo como num súbito despertar. Estava tão soterrado em meu medo da verdade que não parei para pensar nisso desde que cheguei. Estou no verdadeiro Bosque de Verão.

Desço até a beira do barranco e me ajoelho diante do rio. Mergulho as mãos na água gelada e jogo-a no rosto sem hesitar. Esfrego as têmporas, as pálpebras, as bochechas. Isso me deixa um pouco menos tenso, embora o aperto sufocante em meu peito ainda teime em persistir.

Começo a andar ao lado do rio, seguindo seu curso meridional. O céu está ficando mais claro agora, menos corado e mais azul. Esses elementos singulares me servem de abrigo por ora, um escape de meus temores mais recentes. Direciono meu foco para o bosque e tudo que nele há, querendo resgatar aquele prazer que eu sentia em meus sonhos. Posso percebê-lo acariciando as fímbrias de meu inconsciente com dedos suaves, tímido demais para se colocar na mira do holofote, mas está aqui.

Algo passa correndo por meus pés: um esquilo. Ele mergulha na grama e adentra uma fenda no aglomerado de árvores à minha esquerda. Eu paro.

Conheço essa fenda. É o caminho que leva à clareira.

Um milhão de coisas passa pela minha cabeça num segundo. De acordo com a história contada ontem à noite, a clareira, meu lugar preferido do Bosque de Verão dos meus sonhos, foi palco de muitos piqueniques feitos por Yann e sua família — a minha família. Só de pensar que as duas coisas podem estar diretamente relacionadas já me sinto em pânico. Com tudo de inacreditável que tem se apresentado a mim, eu me esqueci de estudar os pormenores.

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