⚡️AVISO DE GATILHO: o seguinte capítulo pode gerar gatilhos devido a atitude homofóbica de um dos personagens e insinuação de violência doméstica. Leia com cautela! ⚡️
"Fuja, afaste-se, fuja, afaste-se, fuja"
-Smalltown boy (Bronski Beat)
🍇🍇🍇Em 1996, numa tarde de quarta feira Julian apareceu na minha casa de surpresa. Eu estava sozinho.
O que aconteceu, nunca vou esquecer.
Já fazia algum tempo que ele me pedia para explorar o quartinho de despejo da minha mãe. Para mim, não havia nada demais lá, só algumas coisas velhas da época em que ela atuava, mas por algum motivo nunca quis se desvencilhar daquilo.
Deu um certo trabalho encontrar a chave, mas eu sabia que estava em algum lugar no quarto dos meus pais.
O lugar estava escuro e com cheiro de mofo, teias de aranha penduradas no teto. A lâmpada mal parava no bocal.
"Olha isso aqui"- Julian me chamou.
Ele segurava um longo vestido bordô, com rendas.
"Que lindo"
"Experimenta ele, Edu"
Abri a boca, em choque.
"Como assim?"
"É, experimenta. Aposto que você vai ficar a cara da sua mãe"
"Não posso fazer isso, Julian"
"Por que não?"
"É só que... não é certo"
"Não tem problema nenhum. A gente pode fingir que estamos em uma peça de teatro. Eu posso usar esse chapéu"
Pegou um chapéu extravagante, com uma pena colorida colada ao topo.
Sabia que mamãe já tinha feito personagens masculinos em sua época de atriz.
Ela dizia que faria de tudo pela arte. Falava aquilo com tanto amor nos olhos, era o único momento em que eu via aquele brilho no olhar dela.
"Eu não sei"
"Ninguém vai ver. Só tem a gente aqui. Prometo que não conto"
Pensei um pouco. Era apenas uma brincadeira, certo? O que de mal poderia acontecer?
Julian me ajudou a vestir. Ele também colocou um terno, que ficava bastante folgado em seu corpo pequeno e magricela. Em seguida, subimos até o quarto de meus pais.
Ele aplicou gel em seus cabelos e o penteou, mesmo que fosse colocar aquele chapéu ridículo. Me convenceu a passar um batom de mamãe e colocar uma das perucas que achamos no quartinho.
"Você precisa ver como ficou, tá maravilhoso"
Me guiou até o grande espelho no centro do quarto.
O rosto de Julian ficava torto no espelho. Era engraçado. Só piorava aquela cara, fruto de alguma piada divina.
"Parece a sua mãe"
Era verdade. Na parede do quarto tinha uma foto pendurada dela quando jovem, com seus longos cabelos castanhos e olhos de mulher fatal.
Ela era muito bonita.
Senti um misto de orgulho e vergonha por estar vestido daquela forma. Orgulho, porque parecer mamãe era uma honra para mim. Vergonha porque ainda achava estar fazendo algo errado.
"Você é linda"- disse, rindo.
Sorri. Vendo meu amigo ali, no espelho, elogiando minha aparência, fez com que algo se agitasse no meu estômago. Não entendia o que estava acontecendo.
"Me dê a honra de uma dança, mademuazélle"
Ri de sua tentativa de pronunciar "mademoiselle".
"Claro, nobre cavalheiro"- disse, tentando afinar a voz.
Brincamos por horas. O tempo passava voando, parecia que só existiam eu e Julian no mundo. Imaginamos uma plateia que ria de nossas piadas, se emocionava com as cenas de drama, suspirava pelos momentos de romance e se espantavam com as partes de suspense.
Era uma história qualquer, mirabolante. Eu fiquei responsável por criar. Julian gostou muito.
Ficamos tão entretidos que não ouvimos a porta do andar debaixo se abrir. Nem os passos que precederam. Quando finalmente escutamos o som da porta do quarto sendo aberta, já era tarde.
Levei alguns segundos pra perceber o que estava acontecendo. Senti o ar sumir de meus pulmões. Ao ver os olhos azuis do meu pai, sua sobrancelha arqueada, claramente desaprovando o que via, tive vontade de sumir. De abrir um buraco no chão e entrar.
"O que tá acontecendo aqui?"- questionou, um tom ríspido.
"A gente tava..."- Julian tentou intervir
"Perguntei pro meu filho"
"Nada"- respondi, tentando disfarçar o tremor na voz. Podia sentir o pânico correndo por minhas veias- "a gente tava brincando só."
"Brincando?"
"É, pai, tava brincando com as coisas da mamãe"
Ele não respondeu. Apenas respirou fundo. Sabia que aquilo significava que estava desapontado comigo. Era o mesmo gesto que ele fazia quando sentia vergonha de mim.
"Menino, vá pra sua casa"
Julian tirou as roupas da nossa peça imaginária rapidamente e saiu.
Ele estava só obedecendo uma ordem de uma pessoa mais velha. A gente era criado pra isso, não? Obedecer. Mas isso não impediu que eu me sentisse só.
"Tire essa roupa e essa... coisa na cara. Vamos conversar"
Fiz o que ele pediu, com um nó na garganta.
Levei a surra da minha vida. Normalmente minha mãe o impedia de exagerar, mas ela não estava ali. O destino quis que meu pai chegasse mais cedo aquele dia antes que ela pudesse voltar pra casa e me encontrar naquela situação.
Mamãe brigou muito com ele naquela noite. Ela sempre me defendia.
Quando fui tomar banho, pude sentir o ardor no corpo todo. Levou algum tempo para as marcas sumirem.
Dormi cedo, as lágrimas molhando o travesseiro.
🍇🍇🍇
Em 1996, meu pai me matriculou em um clube de futebol. Eu detestava jogar, mas ele dizia que eu precisava me envolver em atividades masculinas. Não entendia porque ele se preocupava tanto com isso, já que nunca parava em casa devido ao trabalho.
Uma tarde, voltei pra casa chorando depois de ter caído e torcido o pé durante um jogo. Não disseram nada na minha presença, mas eu ouvi enquanto discutiam na cozinha.
"Ele tem que deixar de ser dramático, Isabel. Meninos jogam e se machucam assim mesmo. Se ele chorar toda vez que isso acontecer, só vai piorar o falatório."
"Que falatório? Você é que tem que parar de ligar pro que as pessoas pensam."
Eu nunca tinha escutado minha mãe levantar a voz.
O grito foi seguido por um som seco estalado. Pensei em levantar pra ver o que tinha acontecido, mas sabia que poderia me meter em problemas. Depois disso, só vi meu pai saindo da cozinha enquanto me escondia atrás do sofá.
Minha mãe saiu minutos depois, com o rosto vermelho e os olhos úmidos.
Desejei poder fugir para longe.
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O amor tem sabor de amoras
General FictionJulian perdeu a mãe e sente que já não é mais o mesmo. Sua sanidade se esvai enquanto conta números incessantemente. Para manter um pouco de si, se segura em seu melhor amigo, o garoto de grandes olhos castanhos. Eduardo sente algo diferente quando...