Capítulo 14- Dor

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⚠️ AVISO: o seguinte capítulo contém gatilho de intencionalidade suicida e Transtorno obsessivo compulsivo ⚠️

"Preciso dormir um pouco
Não dá pra continuar assim
Eu tento contar carneirinhos
Mas tem um que sempre perco
Todo mundo diz:
Que estou indo de mal a pior
Todo mundo diz:
Você só tem que deixar ir"
-I need some sleep (Eels)

🍇🍇🍇
Julian não sabia o que havia acontecido com sua vida. Todos os dias acordava, tomava café sozinho e ia para a escola. Lá, era ignorado pelo melhor amigo, profundamente ofendido pelo comentário infeliz que ele havia feito.

Ele não sabia que algo poderia doer tanto. Amava Eduardo mais que a si mesmo.

Talvez, se ele não tivesse falado nada de errado.

Apenas talvez.

Sentia falta de abraçá-lo, sentir seu cheiro. Cheiro de casa. Seu sorriso, as covinhas na bochecha. Sua risada. Queria poder desmanchar-se e fundir seu corpo a Eduardo, se tornando um só.

Chegava em casa e precisava lidar sozinho com seu pai, que agora também adquirira o costume de agredi-lo fisicamente. Às vezes ele se trancava no quarto, com medo de lidar mais uma vez com o homem lá fora.

José sumia por dias. Quando aparecia, se limitava a falar por monossilabos com o irmão.

Fora todas as coisas externas, também havia o lado de dentro. Ele não conseguia entender o que se passava. Sua obsessão com números só parecia aumentar. Às vezes ele se atrasava pra escola, tentando contar quantos carros passavam por ele na rua. Sempre que perdia a conta, se irritava e começava tudo outra vez.

Imagens perturbadoras invadiam sua mente cada vez mais. Ele se imaginava perdendo o controle e machucando outras pessoas ou a si. Indo atrás dos homens que tiraram a vida de sua mãe e os exterminando. Visualizava cenas em que ele ia para a FEBEM, por ter cometido coisas terríveis.

Tudo aquilo o importunava muito, fazendo com que repetisse mentalmente que ele não era assim. 10 vezes.

Flertava com a morte.

Chegava em casa e da escola e tudo o que podia fazer era deitar e dormir. Dormia para esquecer. O dia todo.

Pensava que outras pessoas, incluindo seu pai e José, poderiam defini-lo como "preguiçoso". Era mais do que isso. Não havia energia em seu corpo. Até mesmo fazer as tarefas de casa, quando fazia, eram um trabalho hercúleo.

Às vezes, acordava no meio da noite, confuso, a cama molhada, chamando por sua mãe. A realidade o invadia com a força de um oceano revolto.

Tudo o lembrava Marta.

As roupas dela, que ainda não tinham sido doadas.

A cadeira no canto da cozinha, onde ela costumava sentar.

A senhora da quitanda, a quem cumprimentava todas as manhãs.

O cheiro de pão fresco.

Vazio.

Apenas resquícios de sua existência, gravados na memória do garoto, enquanto outras pessoas agiam como se ele devesse superar. "O tempo cura tudo!". Descobriu, da pior maneira possível, que aquilo era uma grande mentira.

O fio que o prendia a vida era fino. Porém, ainda existia. Havia algo que o impedia de consumar o ato de desistência. Se achava um covarde, mas a força dentro de si o impelia a continuar. Como se alguma energia invisível o levantasse de manhã e o fizesse ir a escola. Mesmo sem trocar de roupa. Mesmo com uma apenas um pouco de leite no estômago. Mesmo sem escovar os dentes ou pentear os cabelos.

Sentia que sua cabeça não era mais a mesma. Havia sobrado apenas metade da criança que um dia foi. Ele não sabia quando perdeu o controle sobre seus próprios pensamentos, mas sabia que machucava. Doía. Sangrava.

O amor tem sabor de amorasOnde histórias criam vida. Descubra agora