"Eu era criança e ela era criança,
Neste reino ao pé do mar;
Mas o nosso amor era mais que amor"
-Annabel Lee (Edgar Allan Poe)🍇🍇🍇
Poucos dias após o ocorrido no banheiro, Eduardo visitou Julian. O menino havia faltado algumas vezes da escola, devido as dores que os ferimentos causavam e a vergonha dos hematomas."Vim ver como você tava e falar que aqueles idiotas foram suspensos", Eduardo disse.
"Queria que eles fossem expulsos"
Silêncio.
Os dois olhavam para o pequeno quarto de Julian, roupas desorganizadas num montinho no chão, um livro aberto na mesa e um papel de bombom Sonho de valsa jogado ao lado.
"Julian, eu também queria te falar uma coisa"
"O quê?"
"Olha, você... não precisa andar comigo na escola se não quiser"
Ele franziu o cenho.
"Que conversa é essa agora?"
"Foi culpa minha o que aconteceu. Você tentou me defender e acabou machucado"
Julian passou o braço por sobre os ombros do amigo.
"Edu, eu nunca faria isso"
"Mas eles te chamaram de bicha"
Deu de ombros.
"E daí? O que aconteceu não foi sua culpa. Por que você se importa com isso?"
Eduardo não respondeu, mas Julian decifrou o olhar do amigo. A simplicidade das palavras não ditas.
"Eu não sei... Acho que é melhor se eu ficar sozinho na escola"
"Você pode ficar sozinho, se eu puder ser sozinho junto com você. Vamos ser sozinhos juntos", disse, sorrindo.
"Sozinhos juntos?"
"É, eu e você"
Trocaram um sorriso.
🍇🍇🍇
Era a passagem do novo ano de 1998.
Julian e Eduardo estavam deitados na cama do garoto de olhos castanhos, enquanto os fogos explodiam lá fora. Ainda não era meia noite, mas a mãe de Edu os aconselhou a deitar mais cedo.
"Você tá bem, Julian?"
"Tô"
"Não, eu tô perguntando de verdade"
Pensou. Sabia que não poderia esconder os sentimentos de seu melhor amigo.
"Pra falar bem a verdade, eu não sei dizer. Sabe, parece que eu não sou mais a mesma pessoa desde que minha mãe se foi. Sinto que eu sou só a metade de quem eu era. Eu não sei o que acontece dentro da minha cabeça. Sinto que preciso ficar contando tudo."
"Como assim?"
"Tipo..." coçou a cabeça "eu preciso contar sempre até dez antes de dormir, se não eu sinto que vou ter pensamentos ruins"
"Que tipo de pensamentos?"
Suspirou.
"Tipo de que eu vou fazer mal pra alguém"
Esperou pela reação do outro. Sabia que aquilo poderia dar um fim definitivo a sua amizade. Que poderia ser visto como louco por Eduardo.
"Eu também já tive uns pensamentos estranhos", confessou, "mas geralmente eles só passam e vão embora"
"Tipo o quê?"
"Tipo roubar alguma coisa de uma loja só porque eu sei que a câmera tá me filmando", riu.
Julian sorriu.
"Mas eu nunca faria isso. Eu sei que você não faria nada também, Julian. São só pensamentos. Acho que todo mundo tem às vezes, sei lá"
Julian suspirou, aliviado por não ser julgado.
"Obrigado"
"Pelo quê?"
"Por ser meu amigo. Por me aceitar"
Eduardo riu.
"Larga de ser besta, é claro que eu vou te aceitar. Eu sempre vou aceitar você", disse, o abraçando.
"Você costuma se sentir sozinho?", questionou, após alguns momentos.
"O tempo todo. Meus pais quase nunca tão em casa. Por quê?"
"Não é isso. É só... é como se fosse por dentro, sabe? Como se você estivesse sozinho no mundo. Como se fosse uma peça de um quebra cabeça que não se encaixa em lugar nenhum. Como um...", parecia relutante em continuar a frase, "... um desajustado."
"Já. Várias vezes. Quase sempre. Mas qual é o problema?"
Ele deu uma risada forçada.
"Como assim "qual é o problema?" Esse é o problema. Ninguém te leva a sério se for um esquisito"
"Se as pessoas não te levam a sério, elas que se danem. Acho que você não é um desajustado, você só é... diferente. Se ser diferente significa ser desajustado então, bom, eu quero ser desajustado junto contigo."
Ficaram em silêncio por alguns minutos. No escuro, não conseguiam visualizar o rosto um do outro. Apenas ouviam suas respirações, o peito subindo e descendo lentamente.
"O que eu quero dizer é que eu gosto muito de você, Julian. Me faz ficar inspirado pra caramba. Tava pensando numa coisa. Se você quiser... mas só se quiser, a gente pode morar junto quando crescer. Tipo, podemos ser como o Batman e Robin, sabe? Ou como Sherlock e Watson. A gente pode comprar uma casa pequena. Podemos até morar no campo se preferir, mas eu gosto mais da cidade grande. A gente pode adotar um cachorro ou um gato, pintar a casa com nossas próprias mãos. A gente seria como parceiros de vida. O que acha?"
Riu.
"Isso seria ótimo, cara"
Adormeceram.
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O amor tem sabor de amoras
General FictionJulian perdeu a mãe e sente que já não é mais o mesmo. Sua sanidade se esvai enquanto conta números incessantemente. Para manter um pouco de si, se segura em seu melhor amigo, o garoto de grandes olhos castanhos. Eduardo sente algo diferente quando...