Capítulo 19- Perdas (Parte 1)

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⚠️AVISO DE GATILHO: o capítulo a seguir contém menção a suicídio. ⚠️


"Me lembro claramente de implicar com o garoto
Parecia uma sacanagem inofensiva
Oh, mas nós libertamos um leão"
- Jeremy (Pearl Jam)
 

                  
                          🍇🍇🍇

2001 foi um ano muito agitado. Julian e eu estudávamos igual doidos. Ele sempre ia na minha casa ou eu na casa dele depois da escola para estudar. Eu precisava que Julian passasse na faculdade junto comigo. Ele tinha um raciocínio um pouco lento e às vezes dormia no meio dos estudos, mas eu nunca desisti dele. Sabia que não era sua culpa.

Uma tarde, ele apareceu com um buquê de lírios brancos e uma caixa de bombons Garoto.

"Tó", disse, estendendo as flores para mim, sem fazer contato visual. Ri. Parecia um garotinho tímido.

"Pra que isso?"

"É pra agradecer pela ajuda que você me dá. Por não desistir de mim, apesar de eu ser complicado."

"Julian, você não é complicado. Para com isso!", respondi, pegando o buquê. "Como sabia que eu gosto de lírios?"

"Você falou uma vez. Não sabia o que te dar e encontrei esses no caminho."

Cheirei os lírios. Eu amava aquele aroma.

"E os bombons?"

"É pra gente comer nas pausas. Espero que não se importe, eu não almocei"

Ele estava trabalhando em uma oficina mecânica para juntar dinheiro a fim de se manter em outra cidade para os estudos. Sua rotina ficou corrida. Não sabia como entre cuidar de suas crises, lidar com seu pai bêbado, estudar e trabalhar, ele não surtava. Mal tinha tempo para comer. Eu mal conseguia me manter em pé de tanto virar a noite e minha única responsabilidade eram os livros.

"É claro que não me importo. Vamos subir agora, só deixa eu guardar as flores num vaso"

Construímos uma rotina.

Nos intervalos dos estudos, me ensinou a fazer beliscão de goiabada, porque sua mãe sempre fazia.

Quando virávamos a noite e o sono o vencia, ele deitava a cabeça sobre meu colo e me pedia para cantar uma música para dormir. Dizia que minha voz era como as ondas do mar.

Acho que foi o período que mais ficamos parecendo um casalzinho. Não culpo Julian. As iniciativas de contato físico geralmente partiam de mim. Precisei me segurar depois que, saindo da escola de mãos dadas, ele foi atingido por um torrão de terra duro, arremessado por outro aluno. Entrei em desespero. Por sorte, não foi nada grave. Depois disso evitei demonstrações de afeto em público.

Foi também a época que meu pai passou a me evitar. Ele implicava muito com o tempo que eu passava com Julian, nas poucas vezes em que trocávamos algumas palavras. Quando eu estava em casa, ele saía para algum lugar ou se retirava da minha presença. Parecia que só o mero fato de eu existir lhe causava repugnância.

A gente estava na minha casa quando vimos na televisão a notícia do 11 de setembro.

Eu fiquei chocado, mas Julian ficou especialmente perturbado com aquela notícia. Parecia até que ele tinha perdido algum parente na tragédia. Ele sentia tudo de uma forma muito intensa, e se incomodava profundamente com a maldade existente no mundo. Tinha um coração muito bom e isso só me fazia admirá-lo mais ainda, mas ao mesmo tempo me preocupava. Não era bom tomar as dores dos outros o tempo todo.

Naquela época ele dormia muitas vezes em casa, por medo de ter que enfrentar seu pai. A relação entre os dois era muito confusa. Joaquim bebia, o ofendia ou o agredia, e no dia seguinte pedia desculpas, apenas para depois fazer tudo de novo. Eu sentia vontade de proteger Julian dessa ligação tempestuosa, mas sabia que estava fora do meu alcance.

O amor tem sabor de amorasOnde histórias criam vida. Descubra agora