Capítulo 35- Família

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"Das telhas, eu sou o telhado
A pesca do pescador
A letra A tem meu nome
Dos sonhos, eu sou o amor"
-Gita (Raul Seixas)

🍇🍇🍇

Você quer morar comigo?

Li e reli aquela mensagem várias vezes. Julian tinha acabado de falar que havia alugado um apartamento modesto.

Pensei sobre o assunto.

Se você estiver trabalhando ou comprometido, tudo bem se não puder.

Não, eu tô disponível, sim.

Me apressei em responder. Morar com Julian não soava má ideia. No fundo era o que eu sempre havia desejado.

Ótimo. A gente vai conversando.

🍇🍇🍇

Me mudei para a casa de Julian no início de 2009. Estava com 25 anos.

Minha vida melhorou depois disso. Ele me ensinou o ativismo. Dizia que não se pode viver uma vida confortável enquanto houver injustiças. Admirei ele por isso. Apesar de a assexualidade ser tão pouco falada na época, ele sabia qual era seu lugar no mundo.

Nos primeiros anos juntos, nos curtimos bastante. Às vezes cometíamos o pequeno deslize de trocar saliva outra vez. Espontâneos, esses momentos aconteciam quando estávamos felizes. Quando tirei minha carteira de motorista. Quando o segundo sobrinho de Julian nasceu. No show da Madonna. Era uma amizade meio "colorida". Quando as coisas ficavam quentes, eu mesmo fazia questão de interromper, preferindo me aliviar no banheiro a desrespeitá-lo. Dormíamos de conchinha, revezando quem era a parte maior e menor. Passávamos noites assistindo Arquivo X ou algum reality show de qualidade duvidosa. Eu tinha consciência de que não sairia algo de verdadeiramente romântico, um casamento e uma família com filhos, dali, mas continuei mesmo assim. Amar Julian era maravilhoso, independente da forma.

Apoiamos algumas ONGs também. Escolhemos uma que cuidava de mulheres que sofreram violência doméstica, em homenagem à mãe de Julian e para que outras mulheres não passassem pelo que a minha havia passado. Também contribuímos com uma que acolhia pessoas LGBT+.

Ele também me apoiou no nascimento de Verônica, minha persona drag, uma professora de literatura que fala sobre livros em um pequeno canal no YouTube. Acredito que ela já estava ali, à espreita, desde àquela tarde em que Julian pediu para eu experimentar o vestido de minha mãe.

Foi com ele que fui para minha primeira parada. Fizemos amigos assim e começamos a ir todos os anos. Dessa forma que conheci Penélope, uma drag fabulosa que se apresentava em uma boate não muito longe dali. Fomos assistir a performance.

Ela era magnífica. Uma linda queen negra que sempre trazia elementos de sua ancestralidade em seus shows.

Depois de assistir algumas apresentações, conheci Pedro, a pessoa por trás de Penélope. Um cara maravilhoso, gentil e lindo. O homem da minha vida.

Eu ainda estava fazendo terapia para trabalhar a aceitação. Julian me ajudou muito também e tinha o apoio de minha mãe, assim consegui administrar os sentimentos de culpa. Minha espiritualidade estava mais saudável e até hoje sou muito devoto da minha Virgenzinha, mas sem os medos de antes. Foi um processo lento, mas recompensador. Sabia que estava pronto.

Começamos a namorar alguns meses depois.

Julian ficou muito feliz. Os dois se davam muito bem. Pedro perdeu o pai muito cedo. Julian praticamente o adotou, apesar da pouca diferença de idade. Eles entendiam a dor um do outro. Às vezes até sentia inveja da conexão deles, confesso.

Às vezes, quando saímos juntos, os braços dados, eu me sinto como Dona flor e seus dois maridos. Eles sempre riem quando eu falo isso.

Quando Pedro resolveu alugar uma casa para nós, ele também convidou Julian para morar conosco. No começo, senti receio da parte do meu amigo, mas logo aceitou. Eu jamais deixaria ele para trás e Pedro sabia disso. Julian foi o "cupido" de nosso relacionamento e a pessoa que me ensinou que amar era bom e que a forma que eu amava outra pessoa não era errada. Era um amigo importante demais para mim e meu namorado entendia e, para minha alegria, concordava. Ele gostava de dizer que éramos um casal e um "agregado".

Nos casamos depois de dois anos de namoro.

Formamos uma pequena família de 3. Ou melhor, 5, se contar os nossos dois gatinhos: um frajolinha e uma tricolor.

Pedro e eu entramos na fila de adoção a não muito tempo. Com as bênçãos de Deus, em algum momento teremos um novo membro entre nós, com dois pais e o "tio" Julian.

Nossa família não era muito convencional, mas era uma família. Havia muito amor em nosso lar.

Eu sempre me senti muito abençoado por Deus. Às vezes, quando eu tocava no assunto, Julian discordava de mim. Tínhamos ideias completamente opostas do Divino. Ainda assim, eu sentia a presença Dele. Era grato por isso.

O amor tem sabor de amorasOnde histórias criam vida. Descubra agora