capítulo 1

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                                     Marilia M.
                                         2017

Há dois dias, comprei flores para uma pessoa que não era a minha esposa. Desde que fiz isso, não saí do meu escritório. Havia papéis espalhados por todos os lados: bloquinhos, post-its, folhas amassadas com rabiscos sem sentido e palavras riscadas. Sobre a mesa, cinco garrafas de uísque e uma caixa de charutos fechada. Meus olhos ardiam de exaustão, mas eu não conseguia fechá-los. Encarava fixamente a tela do computador, digitando palavras que eu deletaria mais tarde.
Nunca comprei flores para a minha esposa.
Nunca dei chocolates no dia dos namorados, achava que bichinhos de pelúcia eram ridículos e não fazia ideia de qual era a sua cor preferida.
Ela também não fazia ideia de qual era a minha, mas eu sabia quais eram suas visões políticas. Conhecia o seu ponto de vista sobre o aquecimento global, enquanto ela sabia o que eu pensava sobre religião, e nós duas tínhamos a mesma opinião sobre ter filhos: não os queriamos.

Eram nessas coisas que nós mais combinávamos; era isso que nos unia. Nós duas éramos muito focadas na carreira e tínhamos pouco tempo uma para a outra, que dirá para uma família.
Eu não era romântica, e Cecília não se importava, porque também não era. Não andávamos de mãos dadas nem trocávamos beijos em público. Não gostávamos dessas demonstrações de afeto, nem mesmo nas redes sociais, mas isso não queria dizer que nosso amor não era real. Gostávamos uma da outra do nosso jeito. Eramos um casal guiado pela lógica, que compreendia o que era estar apaixonada e comprometida uma com a outra. apesar de nunca termos mergulhado nos aspectos românticos de um relacionamento. Nosso amor era regido pelo respeito mútuo, tinha estrutura. Cada grande decisão que tomávamos era sempre muito bem pensada e frequentemente envolvia diagramas e gráficos. No dia em que a pedi em casamento, fizemos quinze planilhas e fluxogramas para ter certeza de que estávamos tomando a decisão correta.

Romântico?
Talvez não.
Racional?
Com certeza.

Por isso sua recente interrupção era preocupante. Ela nunca me interrompia quando eu estava trabalhando, e fazer isso justo quando eu estava com o prazo apertado era bem esquisito. Eu ainda precisava escrever noventa e cinco mil palavras. Isso tudo em cerca de duas semanas, antes que o manuscrito fosse para o editor. Isso era o equivalente a uma média de seis mil setecentos e oitenta e seis palavras por dia. Eu passaria as próximas duas semanas em frente ao computador, mal tendo tempo de sair para pegar um ar.

Meus dedos eram ágeis e digitavam sem parar, o mais rápido que podiam. As olheiras revelavam a exaustão, e minhas costas doíam por não me levantar da cadeira havia horas. Mesmo assim, quando estava em frente ao computador, com os dedos frenéticos e os olhos como os de um zumbi, eu me sentia mais eu mesmo do que em qualquer outro momento da vida.

— Marília disse Cecília. tirando-me do meu mundo de terror e me trazendo para o dela — precisamos ir.

Ela estava parada na porta do escritório. O cabelo estava cacheado, o que era inusitado, porque ela sempre fazia escova nele. Todos os dias, ela acordava horas antes de mim para domar a vasta cabeleira loira. Eu podia contar nos dedos as vezes que a tinha visto com os cachos naturais. Além do cabelo rebelde, a maquiagem estava borrada, resultado da noite anterior. Só vi minha esposa chorar duas vezes: a primeira, há sete meses, quando descobriu que estava grávida, e a segunda, há quatro dias, quando as más notícias chegaram.

A Força que Nos Atrai - Malila.Onde histórias criam vida. Descubra agora