Sienna
Pão. Leite. Geleia.
Eu só saí para pegar algumas coisinhas no mercado e quando voltei me deparei com o mais completo caos. Eu soube que havia algo errado no instante em que virei a esquina, porque havia uma ambulância parada diante do nosso bloco, com as luzes azuis piscando. A partir daí, embora não tivesse certeza de que eles estivessem aqui por causa de meu pai, algo dentro de mim me dizia que provavelmente estavam. Eles normalmente estavam.
Havia uma pequena aglomeração no gramado diante do prédio, apontando para o nosso apartamento. Eles sempre faziam isso. Caipiras idiotas... Reconheci a maioria deles. Eram sempre os mesmos.
Mas Jacknão estava aqui. Jackera o nosso vizinho, um homem de 60 e poucos anos que me ajudou algumas vezes quando papai caiu e eu não consegui colocá-lo de pé. Quando eu disse ajudou, eu quis dizer ajudou de má vontade. Já tive de bater na porta dele nos horários mais esquisitos sem avisar. Acho que ele não engole muito bem esse fato, mas é a única pessoa que realmente pode ser útil nessas situações.
À nossa esquerda vive uma velhinha frágil. Não posso pedir a ajuda dela, então Jacké sempre
o escolhido. Acho que ele não gostou muito no princípio. Ninguém quer ser o escolhido, mas acho que ele compreende agora como é difícil para mim. Ele até traz comida se eu passo o fim de semana fora, montes de molho à bolonhesa e risoto. Apesar de sua reação inicial, eu nunca me senti constrangida, porque a coisa mais importante na hora é garantir a segurança de meu pai.
Meu pulso começou a acelerar. Não era uma ocorrência incomum, mas estava ficando cada vez mais difícil. Eu sempre temia que a próxima queda pudesse ser a última. Não tínhamos mais onde colocar almofadas na casa.
Mas nada poderia ter me preparado para o que vi quando cruzei a porta. Porque lá, sentado no chão, estava Nick. Seu rosto estava inchado e era óbvio que ele chorara. Havia um líquido escuro por todo o lado. Ele estava olhando diretamente para a frente, e partes de seu cabelo estavam molhadas. Ele parecia traumatizado.
Meu pai estava sendo levantado e colocado no sofá por dois robustos paramédicos. Ele parecia exausto.
Eu não sabia com o que lidar primeiro.
- Estou bem, querida - disse meu pai baixinho, movendo os braços na direção de Nick. - Nick veio ver você. Eu desmaiei enquanto estava fazendo um chá para nós. Ele foi muito eficiente, Si - acrescentou, numa voz débil.
Aquilo era um desastre. Eu conseguira esconder aquela situação de Nickpor tanto tempo. Eu realmente não queria que ele soubesse. Meu peito se encheu de raiva. Tudo bem, eu ia contar a ele algum dia, ia mesmo, mas eu queria que ele conhecesse quem eu realmente sou antes de entrar nessas complicações da minha vida.
De repente, senti a raiva se transformar em ódio. Por que ele estava ali? Por que vinha tentando me pegar de surpresa? E, além de tudo, o olhar de tristeza no rosto de papai mostrava claramente que ele estava desapontado comigo por eu não ter contado a um de meus melhores amigos sobre ele.
Tudo estava uma bagunça. Fui me sentar ao lado de papai, segurando as mãos dele nas minhas e tentando ficar calma, embora tivesse vontade de gritar com Nick.
- Nenhum corte desta vez, não é? - Inclinei-me para inspecionar a cabeça dele. - Mas eu não lhe disse para usar o capacete? - resmunguei. - O senhor obviamente não estava usando.
Nickcontinuava a olhar fixamente para o nada. Ele parecia com raiva.
- Eu já volto. - Beijei a cabeça de papai suavemente. Eu sabia que ele ia ficar bom. Foi uma queda rotineira. Estávamos acostumados a isso.
Eu não estava acostumada, entretanto, a ser surpreendida desse jeito. Era assunto meu. E eu protegia meus assuntos ferozmente. Toquei no braço de Nick, e ele cerrou o pulso com força. Eu podia sentir seus músculos se contraírem sob a pele. Ele ficou vermelho-escuro; parecia furioso. Bom, eu também estava.
Eu o puxei na minha direção para poder levá-lo a um aposento onde pudéssemos ficar sozinhos. A princípio ele resistiu, mas eu puxei mais uma vez, mais forte, e então ele me seguiu.
- Que diabos há de errado com o seu pai? Por que você não me contou, Sienna? - sussurrou agressivamente assim que a porta se fechou, com lágrimas brotando-lhe dos olhos.
Meu corpo se arrepiou todo, e eu percebi que ele estava apertando meu braço direito com força. Puxei-o, tentando me libertar.
- Você está me machucando, Nick. Tire as mãos de mim - grunhi, pressionando o dedo indicador no peito dele.
Eu nunca o vira chorar. Na verdade, eu nunca vira homem nenhum chorar, exceto meu pai umas duas vezes, e fora em circunstâncias excepcionais. Por que ele estava chorando? Não era ele a vítima. Ele não tinha o direito de chorar. O fogo dentro de mim se espalhou, e eu não consegui mais aguentar.
- Mas que doidice você achou que estava fazendo? - perguntei, quando minha respiração começou a acelerar-se em meu peito. Eu sentia o pânico crescendo. Uma raiva que eu não sabia ser capaz de sentir se alastrou feito um incêndio.
Ele olhava para mim como se nunca tivesse me visto antes, os olhos arregalados como antenas parabólicas.
- Como assim? Eu só passei aqui para falar oi. O que há de errado com o seu pai? - repetia ele, a voz ainda mais alta.
- Então você teve a impressão que há algo acontecendo aqui, porque a vida é um pouco complicada para mim às vezes, e então você simplesmente aparece sem avisar? Você acha que pode brincar comigo? - falei, com raiva, subitamente percebendo como estava na defensiva.
Ele hesitou e deu um passo para trás, quase derrubando minha mesa de cabeceira. Meu dedo acusador estava tremendo.
- Sienna, você não tem ideia do que eu acabo de passar... Eu achei que ele tinha... Mas eu o interrompi novamente.
- O que você passou? Deve estar de brincadeira. Eu passo por isso, Nick, todo dia, não você. Sou eu quem dá banho nele, quem cozinha para ele, limpa. Não me fale sobre o que você passou, tá bem? - Eu falava caminhando de um lado para o outro do quarto.
Nickcruzou os braços de modo defensivo, mas eu continuei, agora tremendo ainda mais.
- Papai tem narcolepsia. E, antes que você comece a fazer um monte de perguntas incômodas, é uma doença neurológica que faz com que ele adormeça praticamente o tempo todo. Ele também tem cataplexia, o que significa que os ataques dele são provocados por emoções - felicidade, tristeza, qualquer coisa, e ele cai. Desmaia. É exaustivo. Você não tem ideia, então, como ousa chorar? - As palavras que saíam da minha boca eram feias e distorcidas. Eu podia sentir a vergonha começando a me assombrar, mas era tarde demais.
- Nossa, Si. Eu não sabia... Por favor! Você me disse, e deve lembrar, que ia ficar em casa hoje assistindo a filmes. Lembra? Eu achei que você estaria aqui. Eu não estava tentando pegá-la de surpresa!
De repente, um ar de mágoa substituiu a raiva na expressão dele, e eu senti uma pontada de culpa. É claro. Eu dissera aquilo a ele. Fiquei vermelha, mas já avançara demais na minha explicação para agora virar o bandido. Não havia espaço para retorno.
- E o que o paramédico quis dizer quando falou que ele pode ouvir tudo? - acrescentou, com a voz um pouco mais calma agora. Parecia aterrorizado.
Respirei fundo e tentei fazer meus braços pararem de tremer engolindo um pouco mais de oxigênio.
- Ele desmaia, mas não do modo normal. Ele pode ouvir tudo o que se passa e se lembra de tudo, basicamente. Só não consegue mover o corpo. É meio difícil de explicar - respondi, odiando ter de contar os detalhes todo o tempo para todo mundo. Todas aquelas perguntas estúpidas. Toda a curiosidade imprópria. Eu só queria que ele se afastasse de mim, e sabia que teria de ser detestável para conseguir isso.
- Você é como todo mundo, Nick. Intrometido. Cai fora da minha casa. - Lágrimas começaram a cair pelo meu rosto. Na verdade, eu é que estava constrangida agora. Senti-me uma megera amarga e venenosa.
Ele veio até mim e me envolveu em seus braços bem apertado. Eu fiquei dura feito uma pedra, temendo desmanchar perto dele, porque podia sentir a onda de emoção que reprimo há uma década começando a vazar. Fiquei com medo do que poderia acontecer se eu permitisse que ela se quebrasse na praia.
- Vem cá, por favor, Si. Vem - sussurrou baixinho ao meu ouvido, os pelos de sua barba por fazer raspando suavemente contra meu rosto. Eu podia sentir seu coração contra o meu peito. A beleza dele não diminuíra. Eu ainda era tão deslumbrada por ele que sua proximidade me deixava apavorada. Fazia meu peito apertar e minha adrenalina subir tanto que eu tinha medo de desmaiar. Comecei a chorar. Tentei parar, mas não consegui.
- Você não deveria passar por isso sozinha. Por que não me contou? - perguntou.
Eu sentia como se os anos de tensão tivessem aflorado, uma tensão que eu nunca soube que realmente existia. Por fim, cedi, e ele me aninhou em seu pescoço. Ainda brava, bati com o punho no peito dele. Senti-o engolir com dificuldade.
- Tem sido difícil, Nick. Você não tem ideia. Odeio o modo como as pessoas me tratam quando descobrem. Eu nunca quis que você me olhasse com pena. Não queria que você soubesse. Queria que nunca tivesse vindo aqui! - Eu vomitava as palavras entrecortadas por soluços avassaladores. O pescoço dele ficou cheio de manchas de rímel.
- Si - disse ele, segurando meu rosto entre as mãos e puxando-o para perto do seu. Eu odiava isso, odiava a nudez desse momento. Não havia nada que eu pudesse fazer para me esconder dele, como me esconderia de tantos outros.
- Sienna, por favor, não esconda mais nada de mim. Você é a melhor amiga que eu já tive. Eu quero ajudá-la - continuou ele, passando uma das mãos no meu cabelo. Eu afastei o cabelo e joguei-o para o outro lado para que ele não pudesse tocá-lo. Tentei desviar o olhar; o contato visual significaria o fim da minha guarda e eu ainda estava brava.
- Olhe para mim - sussurrou.
Virei a cabeça para ele, com os olhos vermelhos por todo aquele nervoso. As pupilas estavam encolhidas.
- Sienna. Eu tenho que dizer uma coisa a você. Eu, eu...
Fomos interrompidos por um dos paramédicos, que decidira invadir o quarto sem bater.
- Bom, nós já terminamos. Só fiquem de olho nele o resto do dia, está bem? Ele deve dormir por mais algum tempo. Tivemos de cuidar de algumas queimaduras leves na perna, mas elas devem sarar logo. - Ele inclinou a cabeça e me lançou aquele olhar de pena que eu conheço tão bem.
- Muito obrigada. Vocês foram fantásticos, como sempre - respondi, enxugando os olhos e avançando para levá-los até a porta.
- Não, não se preocupe em se despedir, querida. Aproveite o resto do fim de semana - murmurou ele, percebendo tardiamente que poderia ter interrompido algo muito importante.
De repente, o quarto ficou em silêncio. Voltei-me para Nick.
- Por favor, vá embora - pedi, tentando não gritar. Da minha boca ainda estavam saindo palavras com as quais minha mente não concordava. Eu me sentia tão humilhada. Eu o queria bem longe dali.
- Sienna, por favor - disse ele, estendendo as mãos para mim.
- Não me faça gritar, Nick. Vá embora - repeti, dando-lhe as costas e sentando na beirada da cama.
Ouvi a porta se fechando. Senti-me oca. Fiquei me perguntando se ficaríamos tão próximos assim novamente. Eu queria correr atrás dele e implorar que ficasse, mas mantive a boca fechada e o corpo imóvel. Talvez tenha sido um daqueles momentos em que as pessoas se unem feito ímãs, atraídas uma para os braços da outra por emoções exaltadas, que nunca voltam a acontecer. Lentamente comecei a perceber que fora muito desagradável. Que talvez ele nunca se recobrasse do choque.
Depois de cinco minutos em silêncio, fui para a sala de estar e fiquei diante de meu pai, tentando absorver a enormidade do que acabara de acontecer.
- Ele trouxe isso para você, Si - disse papai, balançando um CD no ar e quebrando meu momento de reflexão. O CD lançou um reflexo bem dentro de meus olhos inchados. - Acho que ele gosta de você. Você sabe disso, não sabe? - continuou, parecendo mais sério agora.
- Por que ficou com essa impressão? - perguntei.
Ele fez uma pausa e então falou: - Não sei exatamente, querida. Mas eu sei reconhecer o amor quando o vejo. Não seja má com ele. Eu ouvi você gritar, Sienna, isso não é bom.
Olhei para ele com uma sobrancelha arqueada e me senti enojada de culpa.
Naquela noite, ouvi o CD. Lindas canções de uma banda da qual eu nunca ouvira falar. Prestei atenção nas letras, procurando entender o que ele estava tentando me dizer, porque eu ainda estava muito brava com ele. Eu queria ligar para me desculpar. Mas não consegui.
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Esta é uma história de amor (Jessica Thompson)
RomanceUm rapaz conhece uma menina e a menina se apaixona pelo rapaz - até aí, nenhuma novidade. Mas, com Sienna e Nick, as coisas não acontecem do jeito que costumam acontecer nas histórias de amor. Tudo bem que ela o achou superparecido com o Jake Gyllen...