"Isso parece errado para você?" PARTE II

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Nick

Eu andava esperando aquela encomenda como se ela contivesse um órgão vital. Era muito empolgante. Sega Mega Drive: a maldição dos meus anos na universidade. Eu ficava noites e noites agarrado àquilo, viciado, enquanto os prazos dos trabalhos se esgotavam. Que tempo maravilhoso foi aquele.
Não sei como consegui terminar a universidade sem nenhuma lesão por esforço repetitivo nos polegares, com nota boa na disciplina de Estudos Clássicos e com a habilidade de me alimentar por uma semana com apenas cinco libras. Felizmente, superei minha obsessão antes da pós- graduação como artista gráfico.
Agarrei o controle, sentindo as familiares curvas do plástico preto. Era básica. Básica e grosseira, e eu adorava aquilo. Tinha apenas dois botões vermelhos e uma grande fenda em cima para encaixar os jogos. Os consoles de hoje em dia podem preparar um chá e limpar sua bunda ao mesmo tempo.
O melhor é que Sienna viria, e eu mal podia esperar que ela chegasse. Tínhamos falado desses consoles havia uns meses na feira de games, e quando eu tinha 21 anos, e, aniquilava os inimigos pixelizados do Street Fighter, ela era adolescente e saltava nas plataformas do Donkey Kong. Era perfeito.
Ela devia estar para chegar, por isso comecei a servir a comida chinesa que encomendara. O prato preferido dela era carne desfiada; o meu era frango agridoce. Já sabia que ela também iria querer comer do meu, por isso pedira a mais.
Ouvi uma leve batida na porta, três batidas suaves. O ar frio da noite encheu o corredor quando abri a porta para ela.
- Sienna! - gritei, como se estivesse surpreso ao vê-la, puxando-a para os meus braços num grande abraço. Seu corpo pequeno estava escondido debaixo de um elegante casaco de inverno, que ela tirou enquanto se dirigia para a cozinha. A presença dela era como um furacão em miniatura. Eu nunca conseguia acompanhá-la.
- Oba! Você comprou a minha preferida! - gritou ela, agarrando uma grande garrafa de sidra para dividirmos. Levamos aquela mercadoria preciosa para a sala, onde fechamos as cortinas e nos isolamos do mundo. Agora éramos apenas eu e minha garota preferida.
Um pequeno abajur no canto da sala era tudo de que precisávamos; a TV emitia uma luz azul tremulante e nós esperávamos a diversão começar.
- Então, seu pai está bem hoje? - perguntei, rasgando um saco de salgadinho de camarão e espalhando vários pelo tapete.
- Está, ele está ótimo, Nick. Acho que ficou contente por me ver sair de casa, assim ele tem um pouco de paz. - Ao responder, ela endireitou as costas; obviamente nossa discussão ainda estava fresca em sua mente. Começou a enfiar garfadas de comida na boca. A garota tem apetite. Adoro isso nela.
Abri a sidra e enchi os copos, o líquido gelado imediatamente criando uma camada fina de gotículas no lado de fora. Não sabia o que fazer primeiro: beber um trago, me empanturrar de comida ou revelar a Sienna o que sentia. (Embora me perguntasse se conseguiria mesmo criar coragem para fazer esta última coisa.) Que maravilha.
- Nick, ultimamente tenho voltado a falar com o Pete, sabe... - Quem é Pete?
- Aquele sem-teto que costuma ficar no banco do estacionamento do trabalho.
- Por que continua a falar com ele, Si? Você quase se meteu numa enrascada por causa disso.
- Eu sei, eu sei, mas me sinto mal por não tê-lo convidado para viver uns tempos comigo e com meu pai. Já faz algum tempo que penso nisso.
De repente, fiquei pasmo com ela. Sentada ao meu lado estava uma garota de 20 e poucos anos que parecia ter mais espaço em seu coração para preocupar-se com os outros do que qualquer pessoa que eu tivesse conhecido. Já era difícil tomar conta do pai; ela não devia estar se preocupando em consertar a vida de todo mundo. Estava em sintonia com o mundo, era tão adulta para alguém tão jovem que me assustava um pouco. No entanto, eu não podia deixar de pensar que aquela ideia dela era um tanto ingênua...
- Eu entendo a sua ideia, mas não seria complicado demais para você e seu pai? - perguntei.
- O problema é justamente esse. Seria mesmo muito complicado. O apartamento é pequeno, e a vida já é muito difícil para ele. Ainda assim, me sinto mal com essa situação. - Ela me fitou, procurando respostas na minha cara assombrada, como tantas vezes fazia.
Sienna era tão bondosa que eu estava convencido de que ela passava a maior parte do tempo se sentindo culpada. Não fosse pelo pai e pelas limitações de espaço, ela provavelmente teria a casa cheia de desabrigados, cachorros vira-latas, gatinhos, pombos e idosos solitários que ajudava a subir nos ônibus. Era ridículo.
Eu não sabia muito sobre o tal sem-teto, mas sabia que ele era um sortudo por ter Sienna em sua vida. Apesar de ser bonita, não havia nela um pingo de arrogância. E eu sabia por quê: Sienna era tão linda que as pessoas nem diziam nada para ela. Como ela não saberia? Era o que provavelmente pensavam. Era óbvio demais.
- Bem, tenho dois jogos: Donkey Kong e Street Fighter. Você escolhe - falei, mudando de assunto, sentindo necessidade de jogar para longe a dura realidade da vida e substituí-la pelos violentos jogos eletrônicos dos anos 80.
Ela deu uma risadinha e escolheu Donkey Kong. Eu já previa. Enfiei desastradamente o jogo no console, sentindo o impacto familiar quando ele se encaixou nos mecanismos internos. Tomei dois goles grandes de sidra e atirei meu tênis para o canto da sala, quase derrubando um abajur. Céus, eu era um idiota. Mas parecia que ela gostava disso, fazia com que soltasse aquela gargalhada tão profunda que era difícil parar.
Agarrei-me ao controle como uma criança recém-nascida, tentando entender como se jogava aquilo. Já se passara muito tempo, e minha memória falhava. Sienna parecia concentradamente a postos, mordiscando o lábio inferior e fitando a tela granulada com os olhos se apertando. Ela não podia ganhar. Isso arrasaria de tal forma meu orgulho que este talvez nunca mais se recuperasse. Seria quase tão grave quanto aquele episódio com o pai dela, e aquilo já fora suficientemente embaraçoso. Tive de evitá-la pelo menos uma semana depois disso. Não, os jogos eram o meu território...
- Então vamos lá, Si - declarei, propondo um brinde com a taça. Ela retribuiu o gesto e se instalou no canto do sofá. As horas seguintes foram uma mistura de sidra e risos. Ela tentou me distrair de todas as maneiras possíveis e imaginárias, inclusive tapando minha cara com o suéter. Mas ainda assim acabei com ela. A ordem do universo fora restaurada, e eu era novamente um homem feliz. Foram tantos gritos histéricos que me surpreendi pelo fato de os vizinhos não terem começado a bater na parede.
O relógio já marcava uma da manhã quando enfiamos o máximo de roupa que conseguimos e fomos até o jardim. Eu levava nas mãos dois cubas libres e um grande e grosso charuto.
Sentamos lado a lado em cima de uma toalha que estendi no deque, e ela apoiou a cabeça no meu ombro. Encaixava perfeitamente. O frio cortante fez o corpo dela estremecer como um cachorrinho, e então pus meu braço esquerdo em volta dela, apertando-a com força. Dei uma tragada no charuto, expelindo a fumaça em anéis pequenos e perfeitos. Talvez, se me esforçasse, conseguiria dizer que a amava usando sinais de fumaça...
Não. Era uma tolice. E impossível. Sienna precisava de mim na vida dela. De repente, vi-me voltando atrás na ideia de, por fim, revelar a ela o que sentia. Toda a minha autopersuasão desapareceu tão rapidamente que eu mal conseguia ouvir as palavras que vinham me martelando a cabeça. Nunca quis ser aquele que lhe partiria o coração, que a desiludiria, que chegaria atrasado para o jantar ou lhe roubaria o espaço na cama. Nunca quis ser a pessoa que a faria chorar, ou que se revelasse uma decepção. Ela era importante demais para que eu fizesse algo assim. Apesar de achar que poderia amá-la melhor que qualquer outra pessoa neste mundo, não confiava que fosse... bom o suficiente.
- Passa isso para cá, seu tonto - disse ela, arrancando o charuto dos meus dedos.
Observei-a enquanto a fumaça brotava de seus lábios. Parecia tão pura que o contraste entre seu rosto e a fumaça saindo em espirais de sua boca ganhava um toque artístico. Eu poderia tirar uma foto daquele momento e expor numa galeria, e todo mundo ficaria maravilhado. Quem é aquela garota? O que ela tem? De onde ela veio?
- O que foi, Nick? Está tudo bem? - Ela se virou para mim. Nossos rostos estavam a milímetros de distância, e o hálito dela era fresco. Teria sido o momento perfeito para beijá-la. Mas simplesmente não consegui.
- Tudo bem, cara, só estou relaxando.
Cara? Que merda era essa? "Cara" era como a chamava quando estava assustado e precisava que fosse minha amiga. "Cara" não era a mulher por quem eu suspirava todos os dias desde que vira seu rosto pela primeira vez me espreitando por cima de um jornal.
- Tem alguma garota interessante na sua vida neste momento? - perguntou ela, voltando seu perfil delicado para a lua, que boiava no céu como suspensa por um fio invisível.
- Tem sim, acho que sim... - respondi, repassando os últimos encontros que tivera.
Não estava dizendo toda a verdade, elas não eram assim tão interessantes. Uma delas tentou me arrastar para trás de uma caçamba de lixo, querendo sexo logo no primeiro encontro. Outra tinha obviamente vários namorados e me encarou como mais um brinquedo, o que eu até toparia, mas não me entusiasmei o suficiente. E depois teve Kate... A bela e torturada Kate. Eu não me dera conta de que, naquela noite em Brixton, levara para casa uma boneca quebrada; tudo o que eu queria era uma noite de diversão, mas ela precisava de conserto e esperava que eu fizesse isso. Kate era, na verdade, o que tive de mais próximo de um relacionamento sério nos últimos tempos, mas tinha algo que me segurava. Estava farto de segurar seu rosto e dizer que ela era linda, cansado dos telefonemas chorosos às três da madrugada. Eu devia ter encarado aquela noite louca como um presságio; havia algo no desespero dessa paixão que indicava a nossa vulnerabilidade partilhada. Eu estava magoado por causa da discussão com Sienna e precisava de uma distração, e Kate necessitava de alguém que a fizesse sentir-se bonita de novo. Foi o que fiz, e isso funcionou como uma droga para ela.
- Quem é, Nick? - Senti o corpo dela ficar tenso; supus que estivesse com frio. Não falávamos muito daquelas coisas.
- Bem, Kate é encantadora. Mas não sei se consigo lidar com os dramas dela. Ela me deixa meio sufocado, na verdade, mas não posso simplesmente deixar que ela se vire sozinha. Já estou muito envolvido com a situação... - Fiz uma pausa, ao perceber que soava como um canalha.
- Isso parece errado para você? - perguntou, dessa vez de um jeito tranquilo, enquanto puxava
o casaco para cobrir os joelhos.
Sentia o cheiro de seus cabelos; um aroma delicioso de maçã.
- Não, não parece. Acho que até gosto dela, mas a realidade é demais para mim. Ela não é minha namorada... mas praticamente se impôs assim. A impressão que tenho é de não ter muita escolha.
Fiquei surpreso como as palavras me jorraram daquele jeito. Agora que conversava com Sienna, meus pensamentos fluíam de forma clara e ordenada, quando tinham estado boiando desordenadamente como uma sopa de letrinhas em minha cabeça.
- Acho que você devia se esforçar mais, Nick. Acho que ela pode precisar de você. Às vezes as pessoas precisam da gente, e isso assusta tanto que as afastamos, quando, na verdade, só o que queremos é estar mais perto. - Ela olhou para mim e de repente senti nos ombros o peso de uma nova responsabilidade. Uma que eu tentara negar, mas Sienna colocara tudo de um modo tão simples que achei que me não percebera algo que era tão óbvio.
- Bem, é melhor eu ir embora, meu querido - disse ela, olhando para o relógio de repente.
O frio se infiltrou dentro da minha roupa quando o corpo quente dela se afastou de mim. Já era muito tarde, e eu previa que ir ao trabalho seria uma verdadeira luta na manhã seguinte. Minha cabeça girava.
- Você pode chamar um táxi? - Ela levantou o rosto para mim ao luar. - Claro. Se você quiser, pode ficar no quarto de hóspedes.
- Não, obrigada, Nick, é melhor eu voltar para casa. - Ela se dirigiu até a sala, e eu a segui. Ouvi quando se sentou de novo no sofá e abri a porta da geladeira para pegar água gelada.
- Já chamo o táxi, só um segundo, Sienna - gritei no corredor, mas não ouvi resposta.
Comecei a remexer nos papéis em cima da bancada da cozinha, à procura do telefone do táxi, frustrado com a minha própria desorganização. Depois de alguns minutos, encontrei um cartão. Peguei o telefone e fui para a sala, mas me surpreendi quando a vi deitada no sofá, dormindo profundamente. Que rápido, pensei. Ela devia estar exausta.
Não sabia bem o que fazer, então fiquei ali olhando para ela por alguns minutos.
Seu belo rosto estava iluminado pela luz azul do protetor de tela da televisão, e ela parecia muito serena.
Fiquei pensando no pai dela e se não seria ruim ela não estar lá de manhã, mas sabia que o assistente social sempre aparecia quando Sienna saía para o trabalho e deduzi que ele ficaria bem. Era uma situação difícil de avaliar.
Achei melhor não a perturbar, então subi, peguei o edredom da minha cama e o levei, tomando cuidado para não tropeçar na ponta e cair pelas escadas, chegando lá embaixo todo enrolado nele. Era exatamente o tipo de coisa que aconteceria comigo. Coloquei-o suavemente por cima dela, reparando em suas costelas subindo e descendo enquanto dormia e em seguida regressei em silêncio ao meu quarto.
Deitei-me sob um lençol fino. Estava frio, mas eu não me importava. Sabia que Sienna estava ali, segura e aquecida debaixo do meu edredom, mesmo eu não estando lá com ela. Enquanto tentava adormecer, pensei na minha vida e no quanto eu progredira depois de ter me separado de Amélia. Quanto disso se devia a Sienna?, pensei. O simples fato de tê-la por perto já era uma bênção que me fazia beliscar a mim próprio. Lentamente deslizei para a terra dos sonhos, despertando algumas vezes quando minhas pernas tremiam, até que por fim me perdi na reconfortante névoa do sono.
Acho que eram umas três da manhã quando vislumbrei a silhueta de Sienna na escuridão do meu quarto. Eu mal a distinguia. Despertei dos meus sonhos com o ruído da porta se abrindo, e com um olho espreitei enquanto ela pairava ali, como um fantasma. Será que era sonâmbula? Fiquei quieto, fingindo dormir, tentando perceber o que se passava afinal. Ela ficou parada por uns minutos; meu coração batia com tanta força que eu conseguia escutá-lo no travesseiro.
Deveria falar alguma coisa? Ir até ela? Já ouvira dizer que os sonâmbulos podiam atacar se os acordássemos... Percebi mais um movimento e então ela sentou na beira da cama, soltando um suspiro. Era um suspiro de infelicidade, eu já a conhecia bem. Mais uma pausa. E depois, silêncio. A escuridão da noite. Estendeu o edredom sobre a cama suavemente para não me acordar e se enfiou por baixo dele. O cabelo comprido fez ruído na almofada, e uma fina mecha me roçava o pescoço.

Esta é uma história de amor (Jessica Thompson)Onde histórias criam vida. Descubra agora