SiennaPete não estava no banco hoje na hora do almoço, como de costume. É estranho, mas não totalmente improvável. Ele adora o parque que fica aqui perto, e presumi que deveria estar lá.
O parque fica a cinco minutos a pé, então decidi ir até lá só para verificar. Era uma sexta-feira escaldante. Londres tinha aquela atmosfera em que todos os homens acham que podem passar de carro e assobiar para o bumbum das mulheres, e as pessoas acham que é aceitável usar óculos escuros no metrô. Nenhum dos dois é legal. Mesmo sob um calor de 30 graus.
Mas talvez esse calor extraordinário tenha sido a razão pela qual Pete fora ao parque, em vez de ficar sentado no tedioso estacionamento de nossa empresa. Eu não podia culpá-lo. Caminhei pelas ruas movimentadas que levavam até o parque; as pessoas vestiam roupas largas e coloridas e ostentavam largos sorrisos no rosto. Eu me sentia bem, e mal podia esperar para contar a Pete sobre o incidente no show de ontem à noite, e como fora engraçado. Eu sabia que ele adoraria essa história…
Ao me aproximar do parque, olhei para o enorme gramado que se estendia diante de mim. O interminável campo de verde luxuriante estava lindo. Dei uma grande golfada do ar de verão, deixando que ele enchesse meus pulmões por completo.
Nas ocasiões em que Pete e eu tínhamos ido ao parque, sempre sentávamos numa enorme árvore caída. É uma forma linda, cheia de buracos de onde esquilos e passarinhos entram e saem, como se estivessem brincando de esconde-esconde. Aposto que ele estaria lá. Meus tênis afundaram na grama macia, e eu me arrependi de não ter colocado sandálias hoje. Eu ia sentir muito calor sentada no sol.
Depois de algumas voltas, serpenteando por entre crianças que riam e casais que se beijavam romanticamente entre as margaridas, consegui ver a árvore. Mas não havia ninguém lá.
Meu coração ficou apertado. Eu estava ansiosa para vê-lo. Nossos breves encontros tinham se tornado uma parte muito importante da minha vida. Apesar da ausência dele, fui sentar-me na árvore por alguns minutos, antes de tudo para recuperar o fôlego, e depois para pensar se continuaria procurando por ele. Talvez ele quisesse um pouco de privacidade hoje.
Levantei-me e comecei a caminhar de volta para o escritório, mas alguma coisa me chamou a atenção quando eu me aproximava da rua. A figura de um homem, de pé sob uma árvore e olhando através dos galhos na direção do luminoso céu azul.
Normalmente isso não me interessaria, mas ele estava se balançando e sua linguagem corporal tinha algo de excêntrico. A outra coisa era a estrutura do homem. Eu o reconheceria em qualquer lugar. Eu tinha certeza de que era Pete…
Protegi os olhos do sol; era difícil ter certeza, tendo que espremê-los. Ele continuava balançando o corpo, os braços estendidos. Não. Talvez não fosse… Comecei a voltar para a rua, mas algo me fez parar. O homem se virou para olhar para mim e rapidamente voltou a cabeça para o outro lado, andando na direção oposta. Definitivamente, era Pete.
Comecei a correr na direção dele. Enquanto se afastava, ele ficava virando a cabeça para trás, mas sem olhar nos meus olhos, como se estivesse tentando fugir sem perceber que eu estava lá.
– Pete! – gritei, mas ele continuou a fugir. Aquilo era muito estranho. Não era do feitio dele. – Pete! – chamei novamente, mais alto. As pessoas ficaram olhando quando eu corri na direção dele, mas eu nem liguei.
Finalmente, ele parou de costas para mim. Alcancei-o e bati com a mão em seu ombro.
– Pete! O que foi isso? Por que está fugindo de mim? – gritei, tentando fazer parecer que eu estava mais entretida do que irritada. E eu certamente estava irritada.
Ele baixou a cabeça, como se tivesse sido preso roubando uma loja.
– Pete, olhe para mim. O que está havendo? – implorei, começando a ficar um pouco nervosa.
De repente, um cheiro de cerveja me penetrou as narinas. Estava vindo dele. Era por isso que ele estava balançando.
Ele levantou a cabeça e deu meia-volta, com uma expressão de vergonha no rosto. Seus olhos tinham aquela aparência lavada de quem bebera. Muito. Ele manteve a boca lacrada. Meu coração começou a acelerar. Ele parecia tão estranho. Fiquei um pouco assustada, para ser sincera. Parecia que ele nunca me vira antes.
– Olha, Sienna, eu… eu tenho de ir – disse ele, enrolando a fala e tropeçando violentamente ao dar um passo adiante. Minha respiração parou quando eu notei que alguns dentes de baixo estavam faltando. Foi um choque enorme. O pesadelo de quando alguém de quem você gosta muito se machuca e você não consegue entender direito a situação. Mas que diabos estava acontecendo?
Fiquei parada observando ele se afastar de mim aos tropeços, prendendo o pé numa toca de coelho e quase caindo de joelhos. Eu não podia simplesmente abandoná-lo assim. Alguma coisa muito séria devia ter acontecido.
– Pete, por favor! Quer sentar e conversar um pouco comigo? – implorei, correndo até ele mais uma vez e puxando seu braço até que seus joelhos cederam e ele aterrissou ao meu lado sobre a grama viçosa.
Havia duas coisas importantes visíveis aqui. A primeira era que ele estava com raiva. Muita raiva. A segunda eram os dentes. A falta de dentes em sua boca. Dentes que estavam presentes e certinhos da última vez que havíamos nos visto. Eu podia ficar brava por ele estar tão bêbado. Eu podia pular na garganta dele e gritar com ele, mas isso não levaria a nada. Eu tinha de ter muito cuidado com a maneira como lidaria com aquilo.
– Ah, por favor, Sienna. Não posso ficar sozinho? Eu só quero ficar sozinho, por favor – resmungou, apertando os olhos por causa do sol e arrancando um punhado de grama, como uma criança brava.
Escolhi ignorar o que ele disse.
– Algo muito estranho aconteceu ontem à noite, Pete – disse eu, cruzando as pernas e esperando que, se pudesse atraí-lo para um assunto diferente, ele se acalmasse e confiasse em mim o bastante para me contar o que aconteceu.
– O que foi, Si? – perguntou, irritado, deixando-se cair de costas e encarando o céu azul. Ele pegou um pauzinho de madeira do chão, já lascado numa ponta, e começou a mordê-lo. Estremeci por dentro de pensar onde aquilo poderia ter estado. Ele não pareceu dar a mínima.
– Bom, Nickme levou para ver um show do meu cantor favorito. John Legend – comecei, perguntando-me se era uma estratégia inteligente.
Pete rolou para o lado, de costas para mim. Ele usava uma calça jeans, que cortara na altura do joelho para transformar em bermuda, que combinou com uma camiseta promocional estampada com a cara de um cachorrinho. Ele quase tinha estilo, tipo “ganhei isto e não tinha escolha”.
– Conte mais – disse ele, sarcástico, atirando o pauzinho quebrado bem longe. De repente, imaginei algum pobre terrier morrendo engasgado com aquilo, então corri para recolhê-lo e o coloquei no lixo. Pete deu um suspiro bravo quando eu voltei e continuei a minha história.
– Bom, tudo ia bem, mas então o cantor achou que éramos um casal e nos pediu para subir no palco enquanto ele cantava uma música romântica. – Fiz uma careta novamente, como fizera muitas vezes hoje ao contar para minhas amigas sobre o mais recente “incidente”. De repente, percebi que falar sobre mim e Nick, e meus problemas, não era uma boa maneira de distraí-lo. Tinha, na verdade, parecido algo muito egoísta. Eu só não sabia como lidar com a situação. Ele grunhiu bem alto.
Estiquei as pernas para a frente e olhei para meus tênis vermelho-vivo, pensando em como a tentativa de contar essa história estava indo mal. Decidi parar.
Pensando no que faria em seguida, comecei a mexer na língua de um dos tênis, que tinha um emblema vintage da Adidas.
– Como estão as coisas com o seu namorado? – perguntou Pete, com atrevimento, tirando um pacote de amendoim do bolso do jeans. Ele cuspiu um pedaço de chiclete antes de jogar a primeira carga de amendoins na boca. Estava mesmo cheirando a bar. Seu tom era carregado de desprezo, mas escolhi responder a pergunta.
– Não estão ótimas. Fomos visitar os pais dele no inverno, acho que eu já contei para você, não? – Pete fez um sinal afirmativo com a cabeça. – Bom, eu venho tentando apoiá-lo, mas ele tem me rechaçado estes últimos tempos – eu disse, sentindo a tristeza me consumir. O odor de cerveja me penetrou nas narinas novamente.
– Acha que tem algo a ver com a sua proximidade com Nick? – perguntou Pete, num tom incisivo e acusador que fez minha respiração parar na garganta.
Tirei meus óculos escuros da bolsa e coloquei-os, arrastando meu cardigã para debaixo da cabeça, procurando um pouco de conforto. De repente, senti que estava na defensiva. Pete tinha sempre “jogado no meu time” o tempo todo. Agora era como se me odiasse.
– É difícil dizer. Ele sempre tratou o assunto com tanta indiferença. Como se nem se incomodasse. Eu venho me esforçando, tentando apoiá-lo, mas não sei se consigo continuar insistindo.
Percebi como aquilo soara fatalista. Como se fosse o começo do fim. O começo do último capítulo. Eu tinha absoluta certeza de que, se Ben me amara, ele não me amava mais, e que talvez ele fosse covarde demais para me dizer e se afastar. Ninguém, exceto papai, consegue me amar por tanto tempo, e ele não tem como ir embora. Ele não tem muita escolha.
Pete grunhiu novamente e em seguida soluçou duas vezes, com as costelas escapando para fora da camiseta. Uma pontada de culpa me atingiu, pois me dei conta de que ele dormia na rua havia muito tempo, e que eu não fizera nada para melhorar a vida dele, exceto trazer-lhe guloseimas e chateá-lo com histórias lamuriosas de minha excessivamente complexa vida amorosa.
– Enfim, chega de falar de mim. O que aconteceu com você? – perguntei, rolando para encará-lo e olhando para os dentes.
Ele suspirou com raiva e não disse nada.
– Acontece, Pete… É difícil dizer, mas você está com cheiro forte de cerveja hoje. – Olhei diretamente nos olhos dele.
O fato de ele aparentar ter deixado todos os vícios me deixara deslumbrada. Fora tranquilo demais, mas fiquei devastada com a ideia de que ele poderia estar escondendo de mim que bebia, e que ele conseguisse ser tão falso na minha cara. Todos precisamos de vícios. Nickfuma às vezes, meu pai tem um interesse nada saudável por chocolate, eu sou chegada a comprar tudo
o que vejo quando as coisas ficam feias… Mas, quando a única coisa que você tem na vida para confortá-lo é a empolgação que lhe dá uma lata de cerveja, posso imaginar que deve ser muito difícil jogá-la no lixo. O pior é que eu meio que o compreendia, mas ao mesmo tempo temia por ele. Temia também a minha própria ingenuidade.
Ele curvou a cabeça de vergonha e nada disse, mas seu corpo disse tudo.
– Vem cá – falei, estendendo a mão gentilmente na direção do queixo dele. Seu lábio inferior parecia bem machucado. O cheiro do álcool era pungente agora. Com cuidado, abaixei seu lábio; ele estremeceu ligeiramente e em seguida deu um tapa na minha mão, espantando-a como se ela fosse uma mosca. Dei um pulo. Qualquer calma que pudéssemos ter conquistado se foi, pois ele agora parecia bravo como estivera quando corri atrás dele.
– O que aconteceu, Pete? – Lágrimas começaram a brotar imediatamente de meus olhos quando vi a agressão novamente em seu rosto. Como naquela vez, com a fotografia…
– Você é só uma menina! – vociferou, sentando-se depressa, equilibrando os cotovelos nos joelhos e enterrando o rosto nas mãos. – Que merda você pode saber sobre a dureza da vida, hein? Você, com suas roupas chiques e seu bom emprego e sua confortável vidinha caseira! – Ele travou o maxilar, com raiva.
As palavras dele me dilaceraram. Eu não sabia o que dizer, então fiquei em silêncio por um ou dois minutos.
– Alguém bateu em você, Pete? – acabei perguntando.
Ele virou o rosto para mim novamente, a fúria estampada nas feições, e piscou com força, um tique engraçado que ele adquirira no último ano. Olhei seu lábio mais de perto; estava roxo- escuro.
– É claro que me bateram, Sienna. Por quê, você acha que eu dei de cara com uma maldita árvore ou algo assim? – rebateu.
Dei um pequeno pulo e senti um enorme aperto na garganta. Comecei a suar. Os olhos dele estavam cravados em mim. Eu podia ver sua raiva queimando por dentro, como uma chama. Era aterrador.
– E, sim, Sienna, eu estou puto. Me deram a maior surra ontem à noite, e hoje eu bebi o máximo de cerveja que consegui, tá bom? Está feliz agora? – Ele cuspiu com força na grama.
– Não, não estou feliz, Pete. Estou muito… Mas ele me interrompeu novamente.
– Não há nada que uma garotinha boba como você possa fazer para ajudar, então por que não para de ficar tentando, hein?
Aquilo já era demais para mim.
– Só me conte o que aconteceu, e eu vou embora – afirmei, com a voz tremendo de medo.
– Quer saber o que aconteceu? Quer conhecer o mundo real? Tá bom, então eu vou contar, mas espero que você aguente, Sienna. Eu estava dormindo debaixo daquele grande carvalho ali e uns garotos chegaram perto de mim. Eles ficaram rindo de mim, e um deles me deu um chute na barriga, sem mais nem menos. Eles tentaram levar minha mochila, mas a foto de Jenny estava lá dentro, então eu a puxei com muita força. Eu nem percebi a força que tinha feito, e um dos garotos foi atirado no chão. E aí eu percebi que eles não eram garotos, eles tinham seus 19, 20 anos. Meus dentes caíram com um soco. Eu os cuspi perto da árvore. Tá certo? – Ele respirava com dificuldade.
Fiquei imaginando os garotos. Os insultos. Os palavrões. As risadas. Eu já vira aquilo na televisão, em filmes violentos.
– Vá embora, Sienna! Não quero você perto de mim agora – ele ordenou, olhando ao longe.
Meus olhos ficaram cheios de lágrimas, e eu me senti exatamente assim, uma garotinha boba. Senti raiva também. Ele não tinha ideia do que eu já passara. Eu não tinha uma vidinha confortável. Longe disso.
– A gente se vê – murmurei, com um nó na garganta, coloquei-me rapidamente de pé e fui embora, com lágrimas escorrendo pelo rosto.
Eu estava furiosa. Furiosa com Pete por ter falado daquele jeito comigo. Furiosa comigo mesma por ter me metido com coisas que eram maiores do que eu. E furiosa com os miseráveis que o tinham machucado.
Eu já fora uma garotinha. O “boba” se resumiu a tentar convencer um estranho a comprar sidra para mim no supermercado, pisar numa minhoca para ver se ela realmente se transformava em duas, ou pedir que Elouise me furasse as orelhas, e não a bater nas pessoas e arrancar-lhes os dentes. Enxuguei as lágrimas e tentei me recompor enquanto voltava para o escritório. Eu estava tremendo.
O ar-condicionado me atingiu feito uma muralha de gelo quando passei pela recepção; senti a garganta pegar. Era a vez de Sandra, lá sentada com uma blusa laranja, lendo uma revista. Seu batom cor-de-rosa e pulseiras douradas me lembraram do tipo de mulher que se vê na Costa do Sol, mexendo na salada de frutas numa cantina de hotel, com os maridos de peitos peludos a tiracolo.
– Olá. Por onde andou, hein? – perguntou, quase sem levantar a cabeça da revista cafona.
– Ah, eu estava no parque com Pete – respondi, esperando que ela não fizesse muitas perguntas e virando a cabeça para que não percebesse meus olhos inchados. Ela trabalha na recepção, é claro que faria perguntas. Ela acha que é da sua conta saber tudo sobre quem entra e sai.
– Quem é Pete, querida? Seu novo namorado? – Ela levantou uma sobrancelha de atrevimento. – Não. É aquele sem-teto.
Subitamente, ganhei toda a atenção dela. A revista foi colocada na mesa.
– Ah, você não continua andando com ele, não é? Eu achei que fosse esperta o bastante para ficar longe dele – disse ela, com desdém e fazendo beicinho.
Essa reação me incomodou ainda mais, então apertei o botão do elevador e torci para ele vir logo. Eu sabia que, se continuasse conversando, surtaria.
– Desculpe, Sandra, eu só… – murmurei evasivamente. Ela não chegou a ouvir o resto da frase porque não valia a pena terminá-la. Eu ficava assustada com a ignorância de certas pessoas.
Eu queria mudar o mundo. Queria torná-lo melhor. Papai sempre diz que isso é próprio da idade e que depois de um tempo você acaba desistindo de coisas assim e só se importa com o que vai fazer para o jantar e quantos saquinhos de chá ainda restam no armário. Mas eu ainda não tinha chegado a esse ponto. Eu faria alguma coisa boa para Pete.
No instante em que eu voltei para a minha mesa, comecei a buscar informações na Internet. Havia montes e montes de informações disponíveis: relatórios, diretrizes governamentais, informações de financiamento, estudos de casos, estatísticas… mas eu só procurava um número de telefone. Alguém que pudesse nos ajudar. E eu quero dizer ajudar mesmo. Não nos dar panfletos que levam a lugar nenhum.
Foi então que eu peguei o telefone e liguei para a maior instituição de caridade de Londres que lida com desabrigados.
– Olá. Sim, meu nome é Sienna. Sienna Walker. Eu tenho um amigo que é desabrigado, e nós precisamos de ajuda…
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Esta é uma história de amor (Jessica Thompson)
RomanceUm rapaz conhece uma menina e a menina se apaixona pelo rapaz - até aí, nenhuma novidade. Mas, com Sienna e Nick, as coisas não acontecem do jeito que costumam acontecer nas histórias de amor. Tudo bem que ela o achou superparecido com o Jake Gyllen...