Nick
A igreja era grande, e nós nos sentíamos pequenos. Um modesto grupo de pessoas espalhadas pelos bancos de madeira, unidas pela perda, mas divididas pelo medo. Havia uma enorme lacuna entre uma pessoa e outra, os familiares constrangidos por nunca terem estado por perto, amigos envergonhados de sua negligência. Rostos vermelhos se escondendo atrás de lenços amarrotados. E entre essas pessoas estava um pequeno punhado de seres humanos que nunca haviam falhado com Sienna. Eles podiam erguer a cabeça com orgulho, seguros por saber que haviam dado seu apoio. Adequadamente.
É sempre difícil quando alguém morre. Coisas inacabadas, arrependimentos se abrem como uma ferida sem ninguém para suturá-la e fazer as coisas voltarem a ser do modo que eram.
Sienna emagrecera muito nas últimas duas semanas, o que era preocupante, mas continuava linda. Ela usava um vestido preto com detalhes de pequenas franjas em torno das mangas e um decote quadrado que revelava sua clavícula. Ele era justo na cintura com uma saia que se abria até acima do joelho. Ela estava usando o vestido com meia-calça escura e sapatos de salto médio, e, cobrindo seu cabelo longo e brilhante, havia um pequeno chapéu cinza anguloso com uma grande pluma enrolada. Ela parecia uma foto de revista, com os olhos azuis contrastando com e pele alva. Suas bochechas eram tão rosadas que era como se ela fosse a personificação da vida e tudo o que nela existe de belo.
Se seu pai pudesse vê-la agora, e eu tinha certeza de que ele podia, eu sabia que ele teria olhado para ela e não desejaria ter mudado nada em sua vida, desde que ela ainda fosse parte dela. Ele a adorava. Ele a amava mais do que o ar que inflava seus pulmões. E eu também.
Eu segurara a mão dela a manhã inteira, seus dedos entrelaçados aos meus, tentando, de alguma ínfima maneira, tornar aquele dia mais fácil para ela.
Foi difícil soltar-me dela e observá-la andar até a frente do pequeno grupo. O ar estava repleto de perfumes de incenso e mogno. Ela virou-se para nós e sorriu, passando as mãos na frente do vestido e olhando para a frente com nervosismo. Meu estômago dava voltas, e eu sentia enjoo. Engoli em seco. Com dificuldade.
Ela pigarreou.
- Meu pai - começou, e inspirou o ar tão profundamente pelas narinas que todos, automaticamente, fizeram o mesmo sem perceber. Ela se recompôs e continuou. - Meu pai, George, gostava de dormir - disse, começando a rir baixinho e olhando para as mãos, que estavam entrelaçadas na altura de sua cintura. Suas covinhas estavam à mostra e isso me fez sorrir, apesar da tristeza presente. Sua voz ecoou pela sala quando ela riu, e a pena em seu chapéu balançou suavemente. Amigos e familiares começaram a rir junto. Baixinho. Timidamente. Com gratidão.
Eu sorri ao lembrar de todas as vezes que George desmaiara. Para trás. Para a frente. Sobre as almofadas, livros e pratos cheios de massa; ele não era exigente. E a situação era tão miserável que você tinha de ver o lado engraçado. Ele certamente o fazia.
- Sim. Como vocês todos devem saber, ele era um homem muito cansado, e nossas vidas não eram nem um pouco normais... - Ela fez mais uma pausa, limpando a dor que ficara presa em sua garganta.
Olhei para trás e vi Elouise inclinando-se para a frente, sentada no banco de trás; ela olhou para mim com lágrimas nos olhos. Segurei a mão dela e lhe sorri, confortando-a. Depois, voltei- me para Sienna.
- Mas, apesar de todo o seu cansaço, sua exaustão, para mim ele era cheio de vida - declarou, com um ar de plena alegria estampado no rosto.
Lenços enxugavam rostos. Soluços eram abafados no peito, músculos retesados. Ninguém queria fazer barulho, então ficamos todos em silêncio, remoendo as lembranças. Eu cerrei os dentes com força para não cair em prantos ali mesmo. Tudo o que eu queria era correr até ela e segurar sua mão enquanto ela falava. Cuidar dela. Era difícil ficar ali sentado assistindo, mas era preciso.
- Eu fui tão abençoada por conhecer meu pai durante o tempo que tive com ele, e eu não mudaria nada. Ele amava tudo o que eu fazia, fosse bom, fosse ruim. Era incondicional - disse, mordendo o lábio num sinal de vulnerabilidade, mas continuou forte. - Nem todo mundo pode dizer que foi amado de modo incondicional. - Ela fez contato visual comigo por um instante e depois continuou. - As coisas foram muito difíceis para nós, mas eu faria tudo novamente, por ele. Cada pequena coisa. Mesmo sentindo um pesar enorme por ele ter partido, não posso deixar de me sentir uma mulher de sorte.
Ao dizer isso, percebi o raio de sol que brilhava através do vitral. Ele a envolvia num foco de luz gloriosa. Somente ela. Ninguém mais.
Ela olhou para o teto, como se ele estivesse lá, falando com ele. - Obrigada, papai - disse.
Elouise curvou-se atrás de um banco para esconder sua dor, os dedos se soltando dos meus.
- Meu pai não saía para o mundo real havia anos, não do modo adequado, mas aprendeu mais sobre ele do que qualquer um de nós. - Ela fez um gesto indicando o caixão, que estava decorado com flores. - Este homem, bem aqui, escreveu sobre o espaço sideral, sobre maratonas, tribos africanas, ciclos de colheita, e muitas outras coisas... Ele aprendia estudando as experiências e crenças de outras pessoas, depois ele descrevia essas experiências como ele gostaria de vivê-las. E não posso deixar de imaginar quantos de nós lutam para olhar para além das janelas de nossos escritórios todos os dias.
Ela começou a caminhar lentamente na direção do caixão.
- Meu pai era um herói para mim. Não porque ele corria em maratonas e não porque tenha viajado pelo mundo, mas porque ele foi capaz de imaginar tudo isso. Ele nunca sentiu amargura, inveja, ou egoísmo. Ele não tinha medo de aprender sobre uma vida que nunca seria capaz de explorar de verdade. - Ela colocou a mão no caixão, deslizando-a sobre a madeira lisa e envernizada.
- Ele sempre me ouvia. Mesmo quando estava dormindo. De alguma maneira, nós superamos tudo, papai e eu. Vou sentir falta dele pelo resto dos meus dias, mas serei sempre grata por tê-lo conhecido e amado. E sempre o amarei... Sempre.
Uma lágrima caiu de seu rosto e aterrissou na superfície de madeira. Ela passou a mão na ace e limpou-a com delicadeza, e mais se seguiram.
- Então, se vocês me perguntarem se estou triste, eu direi que sim, que estou mais triste que nunca. E, se me perguntaram se estou com raiva, eu direi que sim, é claro, porque sinto que ele foi roubado de mim. Mas o mais importante é que estou feliz. Feliz por ter tido a sorte de chamá- lo de pai e de amigo. Tão feliz que valeu a pena toda a luta, todo o medo e a dor, porque sem tudo isso você nunca pode dizer que vivenciou de verdade as melhores partes.
Senti a emoção parar em minha garganta. Eu estava tão exausto que não sabia o que fazer comigo mesmo a não ser começar a brincar com um lenço de papel, rasgando-o lentamente em tiras a partir do meio e transformando-as em bolas entre os dedos. Os músculos do meu estômago começaram a dar puxões tão agudos que eu tentava desesperadamente me manter ereto.
Sienna voltou-se para o rosto de George dentro do caixão, com as duas mãos em cima dele.
- Eu amo você, papai... - Ela mantivera o controle durante o tempo todo, mas agora as lágrimas vieram. Elas jorravam de seus olhos para dentro de um lenço de papel, que ela apertava contra a pele macia. Doía-me doía por dentro, porque eu precisava estar junto dela, mas eu tinha de ficar aqui e deixá-la fazer aquilo sozinha.
Mais uma vez, fez-se silêncio total, quebrado somente por alguns soluços e fungadas, e ela virou-se de costas para nós. Ela disse adeus com as duas mãos sobre o caixão, tremendo muito e chorando em silêncio. Eu podia ver as laterais de seu estômago tremendo. Ela começou a sussurrar para ele - o último adeus que não era para nossos ouvidos. Pertencia a ela e George.
A luz ficou ainda mais clara, penetrando pelas vidraças. Eu gosto de pensar que a luz era George, dizendo a ela, de alguma maneira, que a amava e que estaria com ela para sempre, do modo que pudesse.
Finalmente, ela se inclinou e beijou suavemente a tampa do caixão de seu pai, depois afastando-se dele e voltando lentamente para mim. Estudei seu rosto e vi, não a dor desesperada, mas algum tipo de alegria por ela ter vivenciado um amor tão poderoso. Eu podia ver tudo isso só de olhar para seu rosto, porque já a conhecia muito bem.
Sienna era mágica. Para mim, uma heroína. Ela conseguia ver o melhor em todas as situações e, de alguma forma, superava todas elas. Sua força me assustava, mas ao mesmo tempo invocava enorme inspiração em minha alma. Era como se ela andasse em câmera lenta, com os olhos colados nos meus. Eu nunca sentira tanto orgulho de alguém; estava totalmente maravilhado por ela. Eu queria fugir com ela para algum lugar onde não houvesse gente, não houvesse carros e prédios, para dizer a ela quanto eu a amava e como a achava incrível.
Ela sentou-se ao meu lado, seu corpo quente junto ao meu. Segurei sua mão com força, enfiando todos os seus dedos entre os meus. O caixão começou a sair de vista lentamente, e quando isso aconteceu ela apertou minha mão tão forte que eu temi que seu coração fosse partir- se.
Colei a boca no ouvido dela enquanto ela assistia George desaparecer.
- Você é incrível, Sienna Walker. Fique forte, por mim. Seu pai tinha muito orgulho de você. Mais do que você pode imaginar - sussurrei com carinho.
Mais uma lágrima enorme rolou de seus olhos azuis, e eu estendi o dedo indicador e a enxuguei. Assim que o caixão sumiu, puxei o rosto dela para perto do meu e fiquei olhando dentro de seus olhos vítreos até sua respiração se acalmar e a igreja ficar vazia.
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Esta é uma história de amor (Jessica Thompson)
عاطفيةUm rapaz conhece uma menina e a menina se apaixona pelo rapaz - até aí, nenhuma novidade. Mas, com Sienna e Nick, as coisas não acontecem do jeito que costumam acontecer nas histórias de amor. Tudo bem que ela o achou superparecido com o Jake Gyllen...