"Olha, isso não muda nada, OK?" PARTE I

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Nick

Vou convidar Chloe para morar comigo. Sim. Já decidi. Ainda estou assustado com as coisas dela por toda a casa. Ainda não estou totalmente à vontade vendo frascos elaborados de creme labial, ou seja lá o que for que eles contenham, espalhados pelo banheiro. Mas eu sei que gosto dela de verdade, então decidi enfrentar meu medo. E ainda temo ser abandonado novamente, como Amélia me abandonou. É algo que não sai da minha cabeça, mas não é lógico, certo? Você não pode colocar todo mundo no mesmo saco.
Eu vejo a coisa de modo parecido com fazer bungee-jump ou rafting. Eu sei que vai ser bom para mim. Eu sei que é o melhor. Então, eu vou fazer.
Tenho certeza absoluta de que amo Chloe. Bom, quase absoluta. Eu já disse isso algumas vezes e não senti o pânico que tomou conta de mim nas vezes anteriores, e percebi, em retrospectiva, que antes não era verdadeiro. Eu adoro tê-la ao meu lado a noite toda. Adoro quando cozinhamos juntos. Adoro ver sua linda silhueta através do vidro do box quando estou me barbeando. Adoro tudo.
Então, se este é meu último medo, é hora de posicionar os pés na ponta do trampolim, olhar para a água brilhando lá embaixo e pular. Mergulhar de verdade, até lavar todo esse medo e bobagens. Tudo.
Certamente, é normal sentir uma certa tremedeira acerca desse tipo de coisa. A maioria das pessoas sente, eu espero. Especialmente quando você está convidando alguém para fazer de sua casa o lar dessa pessoa. Sua casa, onde você pode se dar os luxos e prazeres que quiser, sem ninguém para espiar. Sanduíches com estranhas combinações, lavar pratos com a flanela quando não tem mais esponja, e estocar papel higiênico, uma lata de picles e algumas balas de hortelã no seu quarto caso haja alguma emergência nacional e os supermercados fiquem cheios de abobados comprando tudo. Bom, nunca se sabe...
E eu sei, eu sei. Eu tinha essa coisa com relacionamentos no local de trabalho, mas tudo correu sempre tão bem que nunca me pareceu um bom motivo para deixá-la... Chloe já fica aqui a maior parte do tempo, então a única coisa a fazer é encher este saquinho de ansiedade com um movimento grande e ousado. E já é hora de eu crescer. Tenho consciência disso.
Além de tudo, acho que é um movimento que irá afastar qualquer resquício de angústia com relação a Sienna. Não posso passar o resto da vida ansiando e desejando e nunca fazendo as coisas do modo certo porque estou atado a alguma paixão impossível. De qualquer maneira, eu já planejei tudo. Esta não será a parte final da cura. Se Chloe vier morar comigo, não poderei ficar babando no nosso livro de fotos, nem ficar com o dedo pendurado em cima do botão de número 2 do telefone por 25 minutos.
Mas, antes de pedir Chloe oficialmente, decidi que devo aconselhar-me com Sienna. Afinal, ela é a minha melhor amiga.
Pedi que ela me encontrasse no Alexandra Palace, um dos meus parques favoritos em Londres. Do alto, é possível ver o que parece ser a cidade inteira espalhada diante de você, como um quadro perfeito. Às vezes fico sentado aqui e imagino que os edifícios e colinas foram desenhados a carvão, de modo que só podemos ver os contornos e curvas. Imagino como seria tentar recriá-la graficamente, mas acho que eu nunca lhe faria justiça. Fotógrafos tentam captar este cenário e vendê-lo em molduras grossas nas esquinas, mas nada supera estar aqui e usar os próprios olhos. Este seria um ótimo lugar para colocar meus demônios para dormir de uma vez por todas, e eu não podia pensar em outra pessoa para me ajudar. Meu lindo diabrete.
Fiz uns sanduíches hoje de manhã para comê-los na colina. A geladeira estava cheia de presunto velho, cheddar mofado e picles com novas formas de vida acampando dentro do frasco. Ora, se fosse só para mim, eu tiraria os pedaços esquisitos do cheddar e faria um trabalho de escavação no picles, mas era para Sienna também. Eu tinha plena consciência do quanto ela era exigente. Ela era boa demais para os meus sanduíches rançosos de meu tempo de estudante e, lamentavelmente, de meu tempo atual. Acabei decidindo picar um pepino relativamente fresco e um pouco das sobras de frango do jantar de ontem. Não ficou um primor.
Ainda pensando na batalha que travara para cortar o pão com uma ressaca brutal e uma faca cega, contemplava Sienna esticada sobre uma toalha de praia vintage do Danger Mouse. Os sanduíches, na verdade, nunca chegaram ao parque. Senti uma pontada de culpa ao lembrar de quando pensei bem, pouco antes de encontrar com ela, atirei os sanduí​ches numa lata de lixo da estação de metrô e fui correndo para uma lanchonete chique comprar outros. Odeio desperdícios, e isso foi um grande desperdício.
Seu cabelo castanho comprido estava brilhante, revelando tons de vermelho profundo que só se mostravam sob o sol. Óculos escuros enormes e modernos estavam apoiados desajeitadamente sobre o nariz, pois sua cabeça descansava no chão. Eu tive de me conter para não endireitar seu corpo delicadamente e tirá-los de seu rosto para que ela pudesse dormir mais confortável, porque era só isso de que ela precisava, na verdade. Peguei-me olhando para o corpo dela, meus olhos detendo-se em seus quadris, que apareciam um pouco por baixo de uma regata azul-marinho da Franklin & Marshall, que subira quando ela se atirara ao gramado.
Vamos lá, Nick. Seja forte. Este deveria ser um movimento importante que mudaria minha vida; eu não permitiria que desejos infantis de meu passado atrapalhassem. Eu poderia finalmente fechar o livro de Sienna e minha história de amor unilateral, literal e metaforicamente. Ela não se importaria. Ademais, ela tem o Ben, e ela nunca me viu do jeito que eu a vejo. Se visse, sei que estaríamos sentados em minha sala de estar neste momento, abraçando-nos bem apertado e assistindo a reprises de nossas comédias preferidas.
Ficamos lá quietos por algum tempo. Depois, Sienna apoiou os óculos na cabeça, abriu os olhos azuis da cor do mar e levantou uma sobrancelha para mim.
- Nossa, o que foi? Minha calcinha está aparecendo? Estou usando uma calcinha horrível hoje... - continuou, puxando o elástico da ceroula ofensiva. Eu nem a notara, mas agora que ela a mencionou, parecia mesmo estar no osso.
- Então, preparei um rango bem chique, Si - informei, tirando as surpresas culinárias embrulhadas em papel pardo da minha mochila. Sienna sentou-se prontamente, cruzando as pernas e esfregando as mãos de empolgação.
Rasguei a embalagem barulhenta para revelar sanduíches de brie com mirtilo, que tinham praticamente a mesma aparência de quando os comprei, numa lanchonete orgânica muito cara. Será que ela não ia perceber? Senti um arrepio por dentro ao ter um flashback de culpa. Eu não somente estava fingindo que preparara eu mesmo aquela comida, mas também a voz de minha mãe repicava em meus ouvidos, as coisas que ela dizia quando me dava sermões, quando menino, sobre todas as pessoas que passam fome no mundo... Lá estivera eu, meia hora antes, no balcão de uma lanchonete orgânica cara, entregando uma nota de dez libras novinha. E não recebi muito troco.
- Fui eu que fiz - disse, orgulhoso, rapidamente amassando um guardanapo com o logo da lanchonete e jogando-o para trás quando ela não estava olhando. Por que eu sentia a necessidade de mentir sobre coisas desse tipo para ela? Para impressioná-la? Mesmo depois de tanto tempo? Era patético, sinceramente.
- Uau, parecem uma delícia - respondeu Sienna, com os olhos ainda mais brilhantes que de costume. Acho que consegui escapar...
- Bom, eu fiz umas coisinhas ontem à noite, também - disse ela, com aquele sorriso deslumbrante estampado no rosto sardento. De uma mochila Puma, ela sacou uma torta de banana caseira. A ela se seguiram uma salada pequena cheia de tomates-cereja gordinhos que estavam quase bufando sob o calor de 30 graus. Ao lado da salada, um quiche fresquinho que parecia muito macio descansava confortavelmente sobre uma bolsa de gelo azul. Aquilo era algo típico de Sienna, gentil e atenciosa. Ela devia ter tido de arrancar aquilo de George à força de manhã. Isso explicaria o pedacinho de torta que faltava.
- Está com uma cara ótima, Si. Obrigado. - Ela ainda conseguira sobrepujar-me, mesmo com meu caríssimo subterfúgio.
- E então, o que nos traz aqui? - perguntou ela, parecendo animada para saber as novidades que eu tinha para contar.
- Bom, algo muito grande vai acontecer. Mas eu só precisava perguntar para você antes, porque estou um pouco assustado, para falar a verdade. E você é minha melhor amiga, Si, e eu preciso que me diga se estou fazendo a coisa certa.
Percebi o quanto soara carente. Mas eu realmente estava carente. Até escolher que calça eu ia vestir era difícil sem ela. Eu lhe perguntava tudo, desde a quantidade de cebola que deveria colocar num prato até que sapatos eu deveria usar para sair com uma garota (parece que, se você escolher o sapato errado, pode ser fatal).
- OK. - Ela sorriu, tirando um lenço de papel da bolsa e secando os lábios. - Manda brasa. - Muito bem, vou contar - avisei.
Notei que ela largou a comida e colocou os braços para trás, para firmar o corpo. Em seguida, recolocou os óculos escuros.
- Vou convidar Chloe para morar comigo.
Lentamente, ela parou de mastigar até seu rosto ficar totalmente imóvel. Ela não disse palavra. - Si? - exclamei, ligeiramente chocado com a reação dela.
- Ah, me desculpe. Desculpe, Nick. Estou muito cansada, sabe? Nossa, mas é... é fantástico! - gritou, dando um pulo na minha direção e me envolvendo nos braços com a delicadeza e a fineza de um filhote de tigre. Ela quase me derrubou.
Senti um nó crescendo na garganta. Um nó duro bem no meio do pescoço, como se eu tivesse tentado engolir uma pedra e ela tivesse ficado entalada ali, e não houvesse nada a fazer. Eu a abracei por alguns instantes. Ficamos ali juntos pelo que pareceu uma eternidade; não senti que foi mal, nem errado. Ela ficou tão feliz por mim, e isso era lindo.
O silêncio estava me assustando um pouco, então comecei a preencher as lacunas com comentários sobre qual empresa de mudanças devíamos usar para trazer as coisas dela, e onde poderíamos comprar almofadas, porque ela parecia querer mais almofadas.
Um casal de idosos passou por nós e sorriu. Por cima do ombro de Sienna, vi um heliponto no topo de um prédio comercial altíssimo; lembrou-me de quando eu era pequeno e tinha uma obsessão por "cópteros" - pelo menos era assim que meu pai dizia que eu os chamava. E aqui estava eu, um homem adulto com problemas, preocupações e responsabilidades de adulto, olhando para um helicóptero de verdade daqui do meu pedaço de grama favorito.
Foi somente quando Sienna finalmente mudou de posição e voltou a sentar-se que eu percebi que havia um fio de umidade em seu rosto. Uma linha perfeita, como se tivesse sido pintada com um pincel fino.
Seus óculos eram tão escuros que eu não conseguia ver-lhe os olhos. Ela olhou para o seu sanduíche.
- Si? Você está bem? - perguntei, percebendo que ela deve ter ficado todo aquele tempo agarrada em mim porque não queria que eu a visse chorando.
- Sim, estou sim, é claro. E então, o que vai fazer no resto do fim de semana? - perguntou-me, subitamente achando sua salada muito interessante, olhando com atenção para as folhas de alface como se tivesse deixado seu cartão de crédito cair ali.
- Por favor, Si - disse baixinho, arrastando meu traseiro na direção do dela e sentando ao seu lado, de modo que nossos braços e pernas se tocavam.
- Bom, eu não sei o que você vai fazer, mas eu vou comprar mais alguns livros para o papai, e depois vou ver uma mostra, e depois... e depois... - E depois ela começou a chorar. E meu estômago a revirar-se. Merda.
- Desculpe - falou entre soluços, com respirações curtas. Ela ainda não tirara os óculos escuros, então enfiou um lenço de papel por baixo das lentes, tentando desesperadamente secar seus sentimentos. - Eu só fiquei feliz por você. Fiquei emocionada por você ter encontrado a mulher certa, entende? - Ela fungou e olhou para mim.
Retribuí o olhar.
- Então, você acha que estou fazendo a coisa certa? - Ainda bem que as lágrimas dela eram de felicidade.
- Sim, seu babaca! - gritou, empurrando-me de brincadeira e fazendo com que eu tombasse para a esquerda e perdesse ligeiramente o equilíbrio.
- Mas não me esqueça, Sienna, por favor. Ainda podemos nos ver muito. Chloe adora você. Nada precisa mudar. Você promete que nada vai mudar? - Virei-me para olhar para ela, esperando que ela fizesse esse juramento e que tudo ficaria bem. Percebi que havia um tom de desespero na minha voz. Eu até fiz um movimento com as mãos e com o rosto para imitar nossas noites jogando Donkey Kong e fumando charuto. Ela olhou para o outro lado, feito um animal ferido, e permaneceu em silêncio.
- Si, por favor? Nada vai mudar, OK? O acordo é esse. - Bati com o dedo indicador na mão dela. Mas o que significava aquilo? Eu poderia ter começado agarrando a calça dela e puxando- a, como uma criança.
- As coisas vão mudar, Nick. Mas é melhor assim - disse ela, enfim, depois de inspirar profundamente o doce ar de verão. Eu quase podia senti-la fugindo de mim; eu queria ficar agarrado a ela para que não se transformasse em areia e escorregasse por entre meus dedos.
- Como assim? Não vão, não - disse eu, começando a sentir que estava implorando.
- Não é justo, Nick. Não é justo com Chloe. Não estou dizendo que não podemos ser grandes amigos, mas, se vocês dois vão assumir um compromisso sério, as coisas passam para outro nível. Entende o que eu quero dizer? - Ela abriu a mão direita sobre o joelho, revelando a pele alva que não fora tocada pelo sol.
Eu conhecia o toque daquelas mãos. Elas eram quentes e macias, porque eu já as segurara uma vez, quando ela ficara triste. Eu as abrira à força no carro havia muito tempo, quando ela caiu sobre o cimento, e limpei as gotas de sangue. Não havia deixado marcas. Nenhuma cicatriz. Nós saramos incrivelmente bem, pensei.
- Não, não entendo o que você quer dizer - respondi, começando a sentir novamente aquele nó na garganta. Caiam fora, emoções idiotas.
- Olha, eu sei que você e eu somos só amigos e sempre fomos. Mas eu não gostaria disso se morasse com você. Compreende?
Eu não podia acreditar no que ela estava dizendo. As palavras foram jorrando da boca dela tão facilmente como "Fique com o troco" ou "Sem maionese, obrigada".
Uma bola de futebol surgiu do nada e me bateu do lado da cabeça. Meu ouvido começou a zumbir. Joguei-a de volta com irritação, com um pouco mais de força do que queria. Este era um momento vital, importante demais para ser interrompido por objetos voadores lançados por crianças com pais deprimidos.
Sienna virou bruscamente a cabeça, acompanhando a bola que cortou o ar e foi cair na água, quase matando de susto um pobre pato, que grasnou e saiu batendo as asas.
- Nick! Você jogou a bola no lago! Eles não vão conseguir pegá-la! - gritou para mim, brava.
- Não estou nem aí, Sienna. Isso aqui é importante. - Puxei suavemente o braço dela, que começava a levantar-se para pegá-la.
Ela aterrissou ao meu lado como um balão preso a um cordão. Eu podia ouvir as crianças mimadas choramingando como se estivessem bem perto de mim. Desliguei-as.
- Isso não muda nada, OK? - disse eu, com um novo ímpeto de determinação. - Ela praticamente já mora comigo e mesmo assim ainda fazemos tudo que fazíamos antes. Vai dar tudo certo.
Uma dor terrível me retorceu o estômago. Era uma sensação bem familiar, e parecia uma maldição. Como se tivessem anunciado no rádio que o mundo ia acabar, e deixassem a agulha cair numa música dos N-Dubz e a tocassem sem parar enquanto todos se juntavam para beber até morrer. Era ruim a esse ponto.
- Não, Nick. Não é justo com ela - insistiu, deitando-se na grama e enroscando-se feito uma bola. Ela só fazia aquilo quando estava verdadeiramente triste. Ela costumava fazê-lo quando Daniel House agia como um cretino, o que ocorria quase o tempo todo.
- Mas não existe nada entre nós, Si. Nada que nos faça sentir culpados - menti, tentando convencê-la de que estava tudo bem. Eu acho que, secretamente, esperava que ela me dissesse que existia alguma coisa. Que existia algo mais entre nós do que um metro de grama viçosa e o ar abafado de verão, que estava tão pesado que era quase possível pegá-lo com uma colher.
Deitei-me ao lado dela, levantando um pouco minha camiseta, pois o sol agora incidia sobre nós, implacável e imponderável como os spots do palco em que subimos naquela vez. Ela puxou uma grossa mecha de cabelo para cima dos olhos.
- Si, você está feliz de verdade por mim? - Rolei o corpo e encarei-a, esperando que ela parasse de me afastar.
- Sim, Nick. Estou emocionada. Ela é incrível. Vocês dois têm muita sorte - respondeu. Com sinceridade. De verdade. Eu sabia que ela falava de coração.
- E você vai parar com esse papo bobo sobre nós, não vai? - perguntei. Ela não disse nada.

Esta é uma história de amor (Jessica Thompson)Onde histórias criam vida. Descubra agora