"Já não é hora de você, sabe, desistir?"

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Sienna

- Então eu simplesmente adormeci com o braço em volta dele - falei para uma mesa de jovens fascinadas, metade das quais de queixo caído. Parecia um campo de minigolfe, só que com garotas bonitas e sem as plantas de plástico e os macacos empalhados.
Chocada, Elouise largou a colher na tigela de sopa de batata e alho​-poró, assustando-se com as gotículas que respingaram em seu rosto. Ela as limpou imediatamente com a manga da blusa, os olhos ainda cravados em mim.
- E ele não te agarrou? - murmurou ela, descrente, como se essa fosse uma ideia absurda. Um fiapo de alho-poró ainda pendia de seu lábio inferior.
- Não - disse eu, baixinho, empurrando um pedaço de batata na tigela com a colher e mordendo a boca. Era um péssimo hábito meu e algo que eu só fazia quando estava muito estressada.
Fiquei brincando com a comida. A frustração era audível - um suspiro aqui, um "ihhh" ali. As mulheres estavam de luto. Bom, pelo menos as mulheres nessa sala estavam.
- Ele nem me retribuiu o carinho. Eu sei que ele estava acordado porque o coração dele batia muito depressa no peito, e ele estava fazendo aquele som que os homens fazem quando fingem que estão dormindo. - Dei um suspiro. - O que me deu na cabeça?
Meus olhos perscrutaram a coleção de mulheres reunidas diante de mim. Eu esperava por respostas que dessem um fim a esse desencontro de uma vez por todas.
Ly dia lentamente pegou a garrafa de vinho e me serviu uma taça do tamanho de uma banheira. Aceitei de bom grado.
- Ah, Sienna - murmurou, balançando a cabeça, compadecida, enquanto as últimas gotas caíam do gargalo da garrafa.
- Mãããããããe! - veio um grito estridente lá de cima, cortando o clima na hora certa. Aquelas caras tristes estavam começando a me dar pânico.
- Sim, querido? - El reclinou-se na cadeira, os cachos loiros caindo sobre os ombros quando ela inclinou a cabeça.
Aguardamos em silêncio.
- Quero que você pinte minhas unhas - disse a voz inocente do filhinho da minha melhor amiga, que parecia estar na escada.
Ela corou.
- Desculpem, meninas. Eu volto já - anunciou ela, levantando-se depressa e correndo escada acima em seus glamourosos sapatos de salto.
O resto da mesa continuou seu protesto silencioso de preocupação. Lydia olhava para mim com uma expressão embriagada de pena, com os cachos ruivos caindo sobre os ombros e repousando na regata verde-oliva complementada por um delicado colar de prata. Eu jurara nunca contar a ela o que sentia por Nick, mas ela me surpreendera chorando no toalete uma vez, e eu não posso mentir para salvar minha vida. Eu tinha meleca no lábio superior e tudo mais. Ela fora surpreendentemente boa, na verdade, sem espalhar esse mexerico escandaloso para ninguém. Eu até duvidava que Dill soubesse. Eu apresentara Ly dia a minhas amigas, e agora ela era convidada para tudo que planejávamos em grupo.
Tess corria o dedo indicador pelo fio de uma das facas, com seu narizinho perfeito apontado para a brilhante mesa de vidro. Ela era uma coreana estonteante que eu conhecera num ponto de táxi em Clapham há dois ou três anos. Compartilhamos um percurso embriagado na volta para a zona oeste de Londres e desde então viramos amigas. Ela acabara de se formar na faculdade e estava à caça de emprego, o estresse se mostrando em pequenas rugas sob seus olhos. Eu sabia que ela se daria bem.
Depois, meu olhar voltou-se para Penny, que quase tinha uma lágrima nos olhos. Seu cabelo loiro ondulado estava preso num coque moderno e casual, e a maquiagem de seus olhos me deu inveja instantânea. Ela era uma criatura glamourosa que trabalhava num consultório dentário de gente famosa em Kensington, e sempre nos contava fofocas sobre as frescuras das estrelas diante da cuspideira. Mas como será que ela faz aquela coisa com o rímel? Fiquei pensando nisso por alguns instantes e depois sorri para ela. Seu nível de envolvimento emocional com o desastre que é minha vida amorosa me deixava mal. Ela parecia profundamente triste.
Antes que eu percebesse, Elouise estava descendo as escadas, com seu jeans rasgado colado à sua figura esguia. Seus olhos azuis cintilantes escondiam certo constrangimento, e nós automaticamente percebemos que não devíamos mencionar o caso das unhas pintadas. Ela o encobriu com um sorriso adorável, aquele que derrete os corações dos homens do sudeste de Londres. Só é preciso um único sorriso de Elouise para os homens ficarem caidinhos por ela. Já vi isso acontecer em todos os lugares a que vamos juntos - caixas e garçons, todos reduzidos a babões subservientes, desesperados para conseguir seu telefone e garantir o cobiçado primeiro encontro.
- Desculpem, meninas - exclamou ela, afundando no assento, esbaforida. - E então, o que aconteceu depois? - Ela virou-se para mim, todas as meninas inclinaram a cabeça para o centro da mesa, e eu recomecei minha trágica história de amor.
Respirei fundo e continuei:
- Bem, como ele não retribuiu o carinho, senti que tinha cometido um erro enorme, então, quando eu acordei, de manhã, me desculpei por ter ido para a cama dele. - Fiquei envergonhada, meu rosto ficou roxo. - Eu fiz aquele número tipo "bebi demais, sonambulismo", vocês sabem... - Dei umas batidinhas na minha taça de vinho com o dedo e levei-a à boca para dar um gole colossal e atenuar minha dor.
- E você mencionou o carinho? - disse Tess, recostando-se na cadeira, retraída com a humilhação de tudo aquilo.
Até mesmo Lydia agora desnudava seus perfeitos dentes brancos em compaixão, como se estivesse assistindo a algum tipo de malabarismo que dera errado.
- Não. Eu achei que, se fingisse que não tinha acontecido, ele ia pensar que eu fiz aquilo tudo enquanto dormia, ou porque estava bêbada, ou os dois - retruquei, na defensiva. - Pelo menos agora eu conheço a posição dele.
Houve mais silêncio.
- Caguei tudo de vez, não foi? - perguntei.
Penny inclinou-se para a frente e apertou minha mão.
- Não seja boba. E aquela vez em que eu traí meu ex com o irmão dele sem saber que eles eram parentes? Isso sim é que é cagar de vez - disse ela, rindo entre os dentes, obviamente muito orgulhosa de sua traquinagem.
- Eles eram gêmeos idênticos, pelo amor de Deus! - ganiu Tess, segurando os cotovelos. A mesa inteira caiu na gargalhada. - E não tem nada a ver com essa situação. Sienna é uma boa moça! - prosseguiu, fingindo ralhar com Penny. Adoro minhas amigas.
- Mas a coisa ficou pior... - recomecei.
O timer do fogão fez um ruído alto no fundo, como se tentasse colocar um fim nessa fábula antes que ela ficasse ainda pior. Nós todas o ignoramos.
- Ele começou a se vestir assim que acordou. Estava pegando uma camiseta do chão e, quando levantou, bateu a cabeça na porta do armário. Com muita, muita força. Depois ele se trancou no banheiro - arrematei, levando as mãos à boca, numa tentativa de me esconder atrás delas.
Elas todas ficaram boquiabertas.
- Vocês dois são mesmo um par de idiotas, não são? - disse Penny, agora começando a rir.
A risada dela foi ficando tão forte que acabou contagiando todo mundo. Era óbvio que ela estava tentando parar, cravando as unhas pintadas de preto no rosto. Eu adorava vê-la rir daquele jeito, mesmo que fosse à minha custa.
Ly dia foi a próxima, abanando os braços numa tentativa de pedir desculpas. Depois, foi a vez de Tess gargalhar. Elouise foi a última, mas foi com tudo, e com um ronco seguido de um ar de surpresa por ter sido capaz de produzir tal som.
- Meninas! - gritei. - Por favor! Foi horrível, tá bom? - pleiteei um pouco de seriedade, mas foi em vão.
Meus olhos estavam cheios de lágrimas, em parte porque eu me enfiara na cama com um homem que claramente não sentia o mesmo, e em parte porque tudo era tão farsesco que estava se tornando uma piada. Mesmo assim, doía um pouco ver as meninas rindo.
Acontece que Nické um sujeito tão legal que vai continuar fingindo que estava dormindo, mas eu sei que não estava. E eu sou tão covarde que vou fingir acreditar nessa mentira, e vamos todos viver felizes para sempre.
Quando as gargalhadas amainaram e eu já recebera um sorriso de desculpas de cada uma das minhas amigas, voltamos à coisa séria. Foi Penny quem teve a coragem de balbuciar esta breve, mas brutalmente sincera frase:
- Já não é hora de você sabe, desistir?
Pronto. Ela jogara aquilo na mesa em meio a elegantes taças de vinho e guardanapos amassados. Ela pulara toda a baboseira do tipo "talvez ele se sinta intimidado", "talvez ele goste tanto de você que se sinta assustado" e chutado direto ao gol. El arregalou os olhos, olhando para ela como se fosse gritar "Não diga isso!" e dando um tapinha na perna dela.
Elas esperaram pela minha reação, que poderia ser uma de muitas:
1) Ficar muito ofendida, sair correndo do jantar e ignorar minhas amigas pelos próximos seis meses.
2) Ficar muito ofendida, mas permanecer no jantar e começar a falar de Nicknovamente, numa tentativa desesperada de desafiar este conselho cruel.
3) Desatar a chorar.
O que eu fiz, na verdade, foi respirar fundo, sorrir e dizer simplesmente: - Sim.
Porque, sim, era hora de desistir. Vinha sendo mesmo um doloroso e longo fiasco. Uma grande "gafe", os jornais chamariam. Uma mancada. Um desastre total à altura dos grandes vacilos históricos.
Nickera homem. Um homem bom, mas um homem. E os homens são criaturas altamente sexuais. Todos os meus amigos homens reforçam a ideia de que pensar sobre sexo ou assuntos relacionados a sexo era uma das cinco coisas que eles mais faziam todos os dias, vindo logo depois de respirar e um pouco antes de comer. Era um negócio muito sério. Eu sabia que isso era uma generalização, mas, se um homem gosta de uma mulher, ele não finge estar dormindo se ela coloca o braço em volta dele na cama.
Não, não finge. Ele saltaria sobre ela como se ela fosse o último bagel de Nova York. Ou, no mínimo, ele entraria em pânico, lhe daria um beijinho e saltaria sobre ela da próxima vez, quando tivesse superado suas inseguranças. Então, Sienna Walker, era hora de cair na real.
- Sim? - disse Elouise, inclinando-se na minha direção e estreitando os lindos olhos. - Então você vai simplesmente desistir do homem que ama?
Ah, o mito do homem que você ama... Aqueles clichês do tipo "vá pegá-lo", "lute pelo seu homem", "diga o que você quer".
- Para falar a verdade, vou, sim.
Porque meu nível de obsessão por Nickjá estava beirando o "boboca" ou "perseguidora" (dependendo de como se olhasse a coisa) e isso me não fazia sentir muito confiante ou atraente. Portanto, era um ótimo momento para desistir.
Ly dia ficou cabisbaixa.
- Ele ficou tão mais feliz desde que conheceu você, Si. Não sei explicar. Penny intrometeu-se.
- Mas talvez seja só amizade, Lyds. Eu realmente acho que ele já devia ter falado ou feito alguma coisa a esta altura. Não há como negar que eles têm uma amizade especial, mas acho que ele não vê as coisas como Sienna vê.
Ai! Seja forte. Era como se cada uma das minhas unhas estivesse sendo puxada por uma máquina de tortura hidráulica, mas eu a respeitava por isso. Eu precisava ouvir a verdade.
- Hum, não sei - disse Lydia, sem dúvida começando a sentir-se um pouco enervada pela brutal ausência de esperança de Penny com a situação.
- O que você acha, El? - Virei-me para a minha melhor amiga no mundo. A opinião dela selaria o acordo.
- Eu acho, minha linda amiga, que você deve seguir em frente. Não estou dizendo que ele não gosta de você, só acho que a situação está ruim para você. Ele está claramente um pouco confuso - concluiu ela, meio nervosa.
É, era isso. O post-mortem acabara. O veredito? Supere.
Mais algumas taças de vinho, e uma noite de bate-papo gostoso passou no que pareceram segundos. Falamos sobre a queda do filho de Elouise por pintar as unhas de rosa, o que estava causando problemas com os outros meninos da escola. Falamos sobre a pressão de procurar um emprego, a competição, das carreiras. Falamos sobre os prós e contras de casar muito jovem. Falamos até sobre aposentadorias e hipotecas, olha só (embora aposentadorias e hipotecas estivessem ainda muito distantes). A mente de uma mulher de 20 e poucos anos é um lugar assustado e confuso, isso eu posso afirmar, mas acho que todas nós saímos de lá sentindo que algumas coisas haviam sido escolhidas, analisadas e organizadas de um modo melhor do que estavam.
Eu, certamente, senti. Eu tinha um plano para seguir. Fui pensando sobre a minha ideia a caminho de casa, remoendo-a na cabeça e olhando-a de ângulos diversos para ter mais clareza.
Saí da casa de Elouise para o ar frio da madrugada de sábado e calcei um par de luvas cinza com botões em formato de coração que meu pai me dera de presente de Natal. Uma raposa olhou para mim por alguns segundos e escapuliu correndo para dentro dos arbustos.
NickRedland é só mais um cara. NickRedland é só mais um cara. NickRedland é só mais um cara.
Esse era meu novo mantra. Imaginei-me escrevendo essa sentença num quadro negro até preenchê-lo, na cobertura do bolo, até pintá-la numa parede num beco sujo de Londres, e acidentalmente tornar-me uma heroína mundial da arte urbana.
Eu poderia treinar-me para sair dessa. Como um fumante, eu poderia parar de fumar. Como um alcoólatra, eu poderia abandonar a garrafa. Como apaixonada, eu podia aprender a redesenhar a rota para meu coração, de modo que outra pessoa tivesse uma chance, por mínima que fosse, de navegá-lo. Eu podia fazer isso.
E essa não era a única coisa, pensei, enquanto apertava bem meu casaco sobre o corpo, espantando o frio causticante que me penetrava a pele. Eu começaria a comer muito bem. Saladas no almoço, sucos de fruta e iogurte diet. Eu começaria a frequentar a academia. Sim, parecia uma ótima ideia - quatro vezes por semana seria bom.
Eu começaria a ler os livros inteligentes de papai em vez dos livros bobinhos que lia, e poderíamos aprender os dois ao mesmo tempo. Trabalho - sim, eu começaria a trabalhar mais. Até o final do ano seguinte, eu teria uma promoção. E pararia de roer as unhas, de fumar charutos no fim de semana, de beber muito álcool, beber muita cafeína, ficar na cama até meio- dia, e deixar o cabelo crescer por três meses antes de cortar.
Eu começaria uma vida nova e melhor e poderia até ser que eu fizesse as unhas regularmente. Em seis meses, haveria uma Sienna Walker nova e melhorada, com pernas mais finas, cabelo mais brilhante e macio e um salário melhor.
Boa noite.
No sábado, papai me acordou à uma da tarde com um croissant de chocolate e um espresso duplo.
Que Deus o abençoe por pensar em mim, mas não era assim que eu deveria começar. Eu deveria acordar hoje de manhã e descobrir que um par de asas havia brotado nas minhas costas durante meu pacífico repouso. Depois, essas asas deviam me carregar até a academia, onde eu malharia com firmeza por duas horas sem suar nem uma gotinha.
Mas tudo bem. Eu comeria aquilo e depois recomeçaria.
- Bom dia, Si - disse ele, contornando a porta com hesitação e carregando uma bandeja. Aquilo me preocupou um pouco. Ele não só era narcoléptico, mas também sua calça estava comprida demais, com muito tecido dobrando embaixo de seus pés. Eu tinha intenção de levá-las ao alfaiate que ficava próximo ao meu trabalho havia semanas e, em silêncio, me repreendi por ainda não ter providenciado isso, sentindo-me culpada por minha mente ter estado tão ocupada recentemente. Papai e bebidas quentes não eram uma combinação ideal, como Nickdescobrira. Nick. Nick, por quem eu não estou mais apaixonada.
- Como foi ontem à noite? - perguntou ele, aninhando-se no canto da cama, sua frágil figura engolida por uma camisa de xadrez vermelha. Seu rosto parecia bem descansado esta manhã; ele parecia bem acordado. Era bom ver aquilo. Ele começara a tomar um novo medicamento e eu tinha grandes esperanças de que sua vida pudesse mudar. Mesmo assim, havia sempre um novo remédio, uma nova experiência, mas nada muito revolucionário até agora. Tínhamos uma consulta no hospital em breve.
- Foi ótima, obrigada, papai. Nós nos divertimos muito - eu disse, entre bocejos, enfiando as pernas debaixo do bumbum e começando a consumir as guloseimas proibidas. A primeira onda de culpa me invadiu. - Falamos sobre muitas coisas, bebemos vinho, e o jantar estava uma delícia. Foi ótimo - repeti, com um pouco de massa folhada voando da minha boca para o chão.
Meu pai sorriu, e eu fiquei imaginando se ele sentia saudade de seus velhos amigos. Eles vinham visitá-lo de vez em quando, mas era difícil para eles o verem dormir toda vez que contavam uma piada. Na verdade, eles já não vinham com tanta frequência ultimamente. Eu esperava que não se esquecessem dele.
- E então, quando vai convidar Nicknovamente? Adoro quando ele vem tomar chá - perguntou meu pai, com um genuíno ar de esperança nos olhos.
Era difícil. Parecido com explicar o divórcio a uma criança.
- Bem, pai, pode ser que ele não apareça tanto - comecei, rasgando a massa até algumas migalhas de chocolate rolarem para minhas pernas. Eu as coletei delicadamente para elas não virarem pontinhos pegajosos de sujeira marrom. Senti que ele estava alerta o bastante para ser capaz de ter uma conversa séria.
- Por quê, Sienna? Você não brigou com ele de novo, brigou? - indagou ele, já parecendo em pânico. Eu podia ver a primeira onda de cataplexia espetando seu corpo. Ele se firmou, inclinando-se para a frente e colocando as mãos na cômoda. Um frasco de perfume bamboleou e voltou à sua posição. Talvez eu estivesse errada sobre ele estar alerta esta manhã...
- Não, não, é claro que não - apressei-me a garantir, e depois imaginando o que dizer a seguir. Ele não tinha ideia do que eu sentia por Nick.
Nickcostumava vir umas duas vezes por mês para jantar conosco, e depois se seguia uma longa e profunda conversa sobre algo a que meu pai assistira num documentário ou encontrara quando buscava novas e fantásticas informações no Google. As visitas eram especiais para mim e para meu pai, mas por razões muito diferentes. Eu achava que, embora Nickdevesse continuar a vir, suas visitas deveriam ser um pouco menos frequentes. Eu realmente precisava começar a esfriar minha relação com ele.
- É que ele está ocupado com algumas coisas neste momento, então pode ser difícil que ele venha com tanta frequência. Mas ele virá, sim, papai. - Tentei confortá-lo, mas ele já caíra na minha cama, de cabeça sobre o edredom de listras verdes.
Sentei-me e olhei para ele, segurando meu café e sentindo o calor em minhas mãos. Dei-me conta, de modo súbito e pungente, do quanto eu amava meu pai e de como nosso mundinho era singular e estranho. Enquanto crescia, fui aprendendo a compreender nossa diferença e a sentir- me feliz por sermos quem somos. Mas era impossível não reconhecer o quanto ele era bizarro. Aqui estava eu, conversando com meu pai que acaba de apagar aos pés da minha cama, e que mesmo assim era capaz de ouvir e lembrar-se de tudo o que eu dissesse.
Quanto à reação de meu pai às novidades sobre Nick, foi adorável, mas também foi duro para mim. Eu queria me afastar de Nick, e papai tinha de aceitar isso. Eu fiz tanto por meu pai, e esperava que ele pudesse me ajudar nessa hora.
Larguei a caneca azul-bebê na mesa de cabeceira, virei o corpo dele para que respirasse mais confortavelmente e continuei falando, dando tapinhas leves em sua mão direita o tempo todo. Eu sabia que ele assimilaria tudo, apesar de seu estado de exaustão.
- Para ser sincera, pai, preciso conversar com você sobre uma coisa - continuei, encolhendo as pernas até o queixo.
Obviamente meu pai não esboçava reação, então eu continuei com a minha história.
- Sabe quando você conheceu a mamãe, você disse que se apaixonou por ela de cara? - perguntei, sabendo que, naquelas circunstâncias, seria inútil perguntar qualquer coisa. - Bom, basicamente, vou ser corajosa e contar para você que me apaixonei por Nickno instante em que
o vi. E, bem, acho que ele não sente a mesma coisa. - Minha revelação estava me deixando um pouco enjoada. Era angustiante abrir meu coração daquele jeito, mesmo que ele estivesse alerta.
Olhei para ele; sua boca estava escancarada. Dava para ver o contorno de seus olhos pairando sob as pálpebras fechadas. O que eu estava fazendo, contando a meu pai sobre isso? Eu me perguntei, detendo-me por alguns segundos antes de contar mais um pouco da minha história. Acho que era para isso que serviam as mães, na verdade, mas a minha não estava lá, então eu tinha de fazê-lo com meu pai em coma.
- E não é culpa dele, pai, é claro, então não fique bravo. Porque ele sempre será meu amigo, e ele sempre quis o melhor para mim... - Olhei para a janela. Estava começando a chover. Senti um nó na garganta. De repente me senti muito sozinha, e essa confissão estava me deixando mais emocional do que eu esperava.
- No fundo, embora ele continue a ser um amigo para mim, preciso aceitar o fato de que ele nunca será mais que isso. Então, acho que é necessário um pouco de distância. Espero que você compreenda.
O silêncio agora parecia ensurdecedor.
- E ele gosta muito de você, papai. Ele vai voltar. Ele me disse que queria conversar com você sobre os ciclos de colheita da próxima vez, porque ele encontrou umas fotos de uma fazenda em Minnesota, ou algo assim.
Papai continuava deitado, provavelmente gritando algum conselho ou palavra de conforto em sua cabeça, mas não adiantava. Ele não conseguia vocalizá-la.
Inclinei a cabeça e olhei para ele. Talvez ele durma por muito tempo, pensei, ciente de que ele já deveria ter acordado se fosse um acesso rápido. Seu cabelo estava começando a rarear, e eu senti uma pontada de medo ao pensar em como minha vida andara depressa até agora, e em todas as coisas que eu queria ver, fazer e conquistar no resto dela.
A chuva começou a apertar tanto que eu podia ouvi-la batendo na vidraça. Uma lágrima grande rolou de meu olho direito e correu até meu lábio, mas eu me sentia entorpecida. Limpei-a com a língua, sentindo seu conhecido gosto de sal. Que bagunça. Que terrível bagunça. Comecei a pensar em minha mãe, e o que ela diria sobre tudo isso se estivesse aqui. Mas eu nem podia imaginar. Não tinha ideia de quem ela era agora, ou como reagiria a esse tipo de coisa.
Minha mãe, Kim, secretária, chocou toda a família ao abandonar papai quando a narcolepsia foi diagnosticada, e eu fiquei imaginando, ainda muito jovem, como ela conseguira nos deixar daquele jeito. Só recentemente vim a perceber que desenvolvi não somente um ressentimento arrasador por causa disso, mas também um complexo sobre se sou ou não difícil de amar. Agora estou mais velha, vejo bebês de vizinhos e filhas de amigos mais velhos virarem meninas, e depois adolescentes, e fico me perguntando como ela pôde ter ido embora depois de ter me conhecido todo o tempo que conheceu. Eu era uma criança difícil? Era egoísta? Não pode ter sido só pela doença de papai - outras famílias passam por coisas parecidas. Por tabela, presumi que deveria ter alguma coisa a ver comigo...
Suponho que eu não poderia culpá-la por ter se frustrado tão profundamente com a doença de papai. Eu sei, porque às vezes eu fico... Admitir isso sempre me corrói de culpa.
Sabe, ele não era assim quando eles se conheceram. Ele era um homem alto e magro, com cabelo castanho-escuro, olhos azuis brilhantes e um sorriso caloroso. Eu vi fotos de como ele era; tinha um ar atrevido. Mal dá para ver a semelhança agora, exceto pelo sorriso. Mas depois tudo ficou um pouco estranho: papai dormia no chão de shopping centers, cochilava em banheiros de supermercados e geralmente se sentia cansado demais para fazer o que quer que fosse. Era o oposto do vibrante jovem que Kim conhecera num festival de música, usando um chapéu de palha de lado e galochas verdes.
Todos, a princípio, achavam que era preguiça. Mesmo só tendo cinco anos de idade, comecei a perceber. Todos os outros pais eram ativos e ambiciosos, enquanto o meu estava se afundando num buraco. Nos estágios iniciais da doença, todos negávamos o fato, cientes de que ele estava perdendo o controle, mas atribuindo isso a uma fase de cansaço que demorava a passar. Mas, se você olhar para trás com atenção, os sinais de alerta foram muitos. Ele me disse que certa vez desmaiara e caíra no chão quando brincava de esconde-esconde na escola, aos sete anos; costumava adormecer durante as aulas na faculdade e tinha o hábito de continuar dormindo mesmo quando o despertador tocava.
Ainda assim, todos tratavam a situação como uma peculiaridade: homens jovens sempre precisam se esforçar para sair da cama de manhã, e o desmaio podia ser uma variedade de coisas. Talvez ele precisasse de férias, nós sempre pensávamos. Ou de uma mudança na dieta, ou quem sabe de uma cama nova? Até a depressão foi ventilada como uma possibilidade. Sabíamos que havia gente que ficava na cama por dias seguidos, na esperança de acordar e ver que a sombra negra que pairava no canto da sala desaparecera.
Mas, depois de inúmeras visitas a nutricionistas, especialistas em fitoterapia e até espiritualistas, todos ficaram desorientados. Exceto minha mãe, que achava que ele estava inventando desculpas para furtar-se às responsabilidades da vida. Uma doença que faz as pessoas dormirem sem motivo aparente? Impossível.
O consumo de centenas de vitaminas e suplementos diferentes não deu certo, e em quatro anos ele não conseguia mais funcionar dentro do mundo moderno. Foi uma espiral descendente, e eu cresci dentro dela. Minhas primeiras lembranças de papai foram ofuscadas por sua inexplicável doença.
As brigas eram terríveis. Eu costumava ficar na cama tremendo e ouvindo o quebrar de pratos e soluços enquanto mamãe chamava papai de "a criatura mais indolente e horrível que ela tivera
o desprazer de conhecer". Nunca esquecerei essas palavras. Eu só tinha nove anos, mas sabia que era sério.
Lembrei-me dos olhos manchados de minha mãe escondidos atrás dos óculos escuros quando ela me levava de carro para a escola, com o nariz vermelho e lustroso sobressaindo entre camadas de cabelo castanho. Seus ombros estavam sempre tensos e curvados quando ela dirigia. É a lembrança mais nítida que tenho dela em termos de aparência. Não é uma lembrança alegre. A maioria das minhas lembranças anteriores a esta é um pouco confusa, como se eu tivesse ficado tão brava com ela que as apaguei todas. Ela também tinha o hábito de morder o lábio inferior com fúria até ele sangrar. "É só uma rachadura do frio, querida", dizia. Outra mentira para disfarçar a verdade.
Quanto eu tinha dez anos, papai não conseguia rir nem chorar sem desmoronar no chão, sofá ou calçada e cair em sono profundo. Por fim, todos se conscientizaram de que havia algo muito errado. Os médicos franziam os olhos através de seus óculos de aros finos, neurologistas faziam anotações inúteis e vazias, e o caso dele foi passando pelos melhores especialistas do país. Ninguém encontrava respostas.
Ele passava a maior parte do tempo em máquinas de escanear ou plugado a uma rede de fios, mas o estudo frenético das linhas e gráficos vacilantes provou ser nada além de um enigma impossível. A narcolepsia era conhecida, mas não muito bem, e um grande número de profissionais da medicina nunca ouvira falar dela. O ressentimento entre mamãe e papai ficou pior. No fim, não havia mais beijos, abraços ou passeios. A foto do casamento deles foi virada para a parede. Eles continuavam me dizendo que estava tudo bem, mas eu sabia que a unidade familiar estava se corroendo e logo desabaria sobre o oceano como um chalé pequeno e deserto à beira de um abismo em erosão.
Não deve ter sido uma surpresa tão terrível que papai tenha desenvolvido um interesse não natural por documentários da Sky; gravando tudo, assistindo a tudo várias vezes. Sua fascinação pelo mundo exterior começou ali e depois se espalhou para sua escrita, em centenas de cadernos, nos quais ele explorava a sensação de que as coisas deviam despertar, conforme suas lembranças ficavam cada vez mais fracas. Ele vem escrevendo nesses cadernos praticamente desde que ficou doente de verdade. Havia caixas de cadernos no quarto dele, todos etiquetados na frente e organizados em ordem cronológica. Eu os comprava para que ele pudesse escrever os pesadelos e visões que acompanham sua cataplexia, sobre suas frustrações e medos.
Era uma tarde úmida de domingo quando papai descobriu. Ele me contou quando eu fiquei um pouco mais velha.
Um documentário americano chamado Sleep Wake estava passando na TV; ele desenhara um círculo em torno de seu nome na programação com caneta vermelha, e ticado duas vezes para garantir. Ele até programara um despertador para lembrá-lo, e colocou uma fita de vídeo para gravá-lo.
A sequência de abertura mostrava verdejantes campos à luz do sol, lembrando os créditos de abertura da série Os Pioneiros. Um carneiro fofinho entrava pulando naquele cenário natural e pum. Pronto. A criatura desfalecia, inerte, como se tivesse morrido. Papai disse que era hilariante, mas também profundamente triste, os dois ao mesmo tempo. O carneiro logo voltou a dar pulos, mas depois de alguns minutos estava novamente no chão, com os quatro cascos se contraindo.
Papai sentou-se sozinho diante da TV, eu estava na casa de uma amiga, e mamãe estava fofocando com uma vizinha e tomando uma garrafa de vinho. O programa continuou, e papai tremeu diante da repugnante familiaridade do que via. O espectador era apresentado a Martha, de Illinois, que não era capaz de ficar acordada por mais que cinco horas por dia, desmaiando onde quer que estivesse. Mas ela era obesa, absolutamente doentia e repulsiva. Ele não queria pertencer ao mundo dela. Ele não era daquele jeito...
Mais dois outros estudos de casos, e papai tinha a sua resposta: narcolepsia. Depois disso, ele não perdeu tempo. Na manhã seguinte, vestiu-se sozinho e pediu que mamãe o levasse ao consultório do médico. Dessa vez ele colocou uma camisa; ele queria ser levado a sério. Lembro-me claramente desse episódio.
Papai arrastou-se vagarosamente da porta da entrada até o banco da frente da nossa van, agarrando-se à estrutura da porta em determinado momento para não cair. Já se espalhara a notícia de que havia algo errado, que ele tinha alguma doença muito diferente. Ele desmaiara no nosso jardim da frente algumas vezes. As pessoas falam. Os vizinhos ficaram parados em seus jardins, olhando para ele. Jacknão, mas ele de vez em quando nos olhava de modo estranho. Ele não era fofoqueiro, mas era possível ver que, ao seu modo, ele ficara curioso sobre o que ouvira cochicharem por sobre as cercas e portões quando ia comprar pão e leite.
Mamãe cumpriu o pequeno trajeto até o consultório, notando uma fita de vídeo nas mãos de papai, que tinha os dedos brancos de tanto apertá-la. Eu estava sentada no banco de trás.
- Mas que diabos é isso, George? - perguntou ela, com seu desdém costumeiro.
- Creio que sei o que está acontecendo - respondeu ele. - Acho que tenho narcolepsia.
- Narco o quê? - disse ela, jogando a franja para trás de modo indignado. Ela estendeu a mão direita no ar com raiva, as unhas com manicure perfeita cintilando feito lâminas afiadas. O comentário foi seguido por um profundo suspiro e depois por mais silêncio.
A espera para falar com o médico pareceu durar uma eternidade. Mamãe folheava com irritação as páginas brilhantes da revista Hello! praticamente sem ler os artigos. Tentei falar com papai, mas ele não se mostrou muito receptivo. Lembro-me de ter notado, pela primeira vez, as rugas profundas em sua testa. Ele estava envelhecendo. Ele tamborilava com os dedos na fita de vídeo, e uma senhora de idade olhou para ele com expressão severa do outro lado do corredor, visivelmente irritada.
- Senhor Walker? - chamou a recepcionista mignon de trás de sua divisória de vidro. Era agora. Papai levantou-se, mas estava com um ar muito cansado. Mamãe e eu sabíamos aonde aquilo poderia dar. Ele tentou se firmar e procurou respirar fundo o ar rançoso da sala de espera, numa tentativa de não cruzar o limite, mas era tarde demais. A força foi arrancada de suas pernas como uma toalha de mesa sendo arrancada de um banquete. O corpo de papai despencou no chão, a cabeça quase batendo na quina de uma mesa de madeira, atingindo o tapete com um baque oco e forte. Mamãe caiu de joelhos para levantar a cabeça dele, e por um segundo parecia que eles estavam como sempre esperei que ficassem. Juntos.
A sala de espera virou um caos. As dez pessoas presentes deram um pulo e formaram uma roda em torno de papai, mamãe e eu; um clima de pânico sequestrara o espaço.
- Por favor, por favor, podem se afastar? - implorei. Eu odiava aquilo e toda aquela humilhação. Também ficava assustada. Eu estava mais que acostumada a distanciar curiosos do corpo inerte de papai no piso sujo de lugares públicos.
- Ele não parece bem - disse uma bisbilhoteira, a mesma que olhara para ele com desprezo um pouco antes. Ela colocou os óculos vermelhos na ponta do nariz para poder olhar melhor.
- Ele deve estar tendo um ataque! - gritou outro, tão alto que até uma senhora quase surda que estava no canto da sala se assustou.
Alguém surgiu com um copo de água fria e uma bolacha de chocolate, e ficou andando de lá para cá no fundo da sala.
- Muito bem, já chega! - gritou mamãe, e sua voz quebrou a histeria instaurada na pequena sala de espera feito uma faca. A confusão de mexericos e falatório estancou.
De repente, mamãe começou a chorar.
- Este, gente, é meu marido! - gritou ela. Dei um puxão no seu braço para que ela parasse, ciente de que um grande ataque de nervos estava prestes a acontecer. Até os funcionários da recepção esticavam seus pescoços feito corujas, empurrando uns aos outros na saleta para poder olhar melhor, seus crachás arrastando no balcão de vidro. Parecia um desastre de trem, e eu poderia puxar o braço dela quanto quisesse que não conseguiria detê-la.
- Este homem era a pessoa mais incrível que eu já conheci - começou mamãe, com a voz vacilante em meio àquela loucura. - Ele me fez sentir a mulher mais linda do mundo. Ele era alegre, ambicioso, cheio de energia... - Eu sabia que mamãe estava consciente da plateia reunida, mas certo amortecimento em seus olhos indicava a perda total de controle. Ao falar, ela jogava os braços para o teto, com o pulso cheio de pulseiras a tilintar umas contra as outras. Fiquei vermelha.
- Este homem, meu marido, está muito mal. Nenhum de nós sabe o que é, e eu não consigo aguentar, não consigo... Não consigo mais. Ele não é o homem com quem me casei. Por favor, alguém me ajude! - E pronto, o show terminou, e ela se enrolou numa bola no chão ao lado do corpo aparentemente sem vida de papai. Era como uma cena de crime. Algo se perdera, dera errado, se desagregara, e aquela pequena família não estava conseguindo juntar os pedaços. Mamãe e papai eram como crianças. Eu tinha de limpar a sujeira.
A mulher séria de óculos esticou o braço sobre as costas de mamãe e a esfregou com carinho. Ninguém sabia o que dizer. Alguns, menos curiosos, voltaram para suas cadeiras forradas de poliéster e mergulharam em jornais; talvez os resultados dos jogos ou as ações da bolsa pudessem apartá-los da nua vulnerabilidade dessa explosão emocional. Outros chegaram mais perto da ação, com olhar de tristeza genuína e expressão de preocupação.
Fizeram chá, abriram espaço e papai acabou voltando a si. Os olhos dele estavam cheios de lágrimas. Ele ouvira tudo. Ele sentou-se e tentou apertar a mão de mamãe, mas ela a puxou. Eu
vi. Nunca esquecerei aquilo.
Depois de alguns minutos, quando papai estava pronto, ele avançou, um tanto confuso, até o consultório, com uma mão agarrando a barra aparafusada na parede e a outra ainda segurando a fita de vídeo.
Nós já conhecíamos bem a doutora. Rebecca Knowles era uma médica jovem, que devia ter se formado há pouco mais de cinco anos. Ela tinha um rosto delicado em formato de coração, e cabelo dourado​-escuro, puxado para trás por uma fita preta. Parecia tímida, mas estava longe disso. Ela sempre expressava sua frustração com a piora da condição de papai, apoiando a cabeça nas mãos sobre a mesa. Era um caso tão incomum, e ela não conseguira resolvê-lo. Ela admitira que ele estava se tornando uma obsessão, em meio à rotina de costelas quebradas e infecções de garganta.
- Eu sei qual é o problema - disse papai, empurrando o vídeo para ela. Sentei-me numa cadeira ao lado dele. Mamãe não estava à vista.
A Dra. Knowles sentou-se ereta na cadeira com um ar incrédulo no rosto, presumidamente imaginando, a princípio, que raio poderia ser o diagnóstico de papai, e depois onde ela encontraria um velho videocassete para ver aquela fita.
Ela não disse nada, só colocou o dedo indicador no ar, como se tentasse sentir onde o velho e alquebrado aparelho poderia estar. Ela se movia para a direita e para a esquerda, claramente pensando enquanto andava. De repente, voou na direção de um armário e tirou de lá uma TV com cara de velha que tinha um aparelho de vídeo embutido, cujo fio bateu numa pilha de papéis, que caíram todos ao chão. Em um minuto, mais ou menos, ela já o ligara e introduzira a fita, que de bom grado aceitou o desafio, mastigando as engrenagens com ávida satisfação.
O silêncio tomou conta da sala enquanto testemunhávamos pela primeira vez qual seria a grande descoberta. Depois ficamos sabendo que mamãe estava trancada no toalete do fim do corredor, afogando-se freneticamente num cigarro.
Lembro-me de olhar para a Dra. Knowles; ela chorava. - É claro - ficava repetindo sem parar. Papai estava certo.
Depois disso, nunca mais vimos mamãe.

Esta é uma história de amor (Jessica Thompson)Onde histórias criam vida. Descubra agora