Colheita

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Quando acordo ainda é noite. O vento frio que entra pela janela faz os pelos das minhas costas se arrepiarem. Jogo os pés para fora da cama e os enfio nas sandálias do meu pai, passo a mão pela parede e acendo a luz, o chiado que a lâmpada emite faz sentir-me mais confortável. No lado oposto do quarto dormia a minha irmã, o diabinho, ela se mexia e balbuciava algo. Olho para o relógio de parede e parece que já são duas da manhã. Me levanto e vou arrastando os pés até a cozinha. A lâmpada já está acesa, o que é comum. Abro a geladeira, pego a garrafa de água e a bebo mesmo no gargalo, o que meu pai odiaria de ver. Sento na mesa e olho para a geladeira, nela tem um calendário vermelho. No calendário, no meio do calendário, o dia de hoje está marcado de vermelho, Colheita. Deixo a garrafa cair.

● ● ●

No café da manhã todos estão presentes, o que é raro. Minha mãe está no fogão terminando de preparar o café, meu irmão mais velho, Argos, ainda dormia na mesa, meu pai estava tentando calçar suas botas novas e minha irmã, a mais nova, estava sentada ao meu lado, debruçada em um livro que pegara emprestado de uma amiga.

— Circe! — grita minha mãe. — Eu já disse para não ler no meio do café da manhã, guarde este livro agora!

— Mas mãe... — ela tenta.

— Agora!

Circe sai resmungando.

Minha mãe é aquele tipo de mulher que adora nos ver reunidos e fingindo que somos uma família feliz. Ela beija a testa do meu pai e se senta do seu lado, nesse meio tempo o Argos já acordara e a Circe já tinha voltado, ela tirava as cascas das torradas.

— Pai... que horas começarão a colheita? — pergunta Circe passando manteiga na torrada sem cascas.

— Como sempre, às duas horas filha. Por quê?

Ela limpa as mãos sujas de manteiga em seu vestido.

— Por nada, pai! É que eu não vejo a hora do Arion ser sorteado e ele ir embora de vez, e deixar o quarto inteiro pra mim. — Ela ri.

Arion sou eu. Ela me odeia.

— Circe! — grita minha mãe com a faca da manteiga em mãos. — Não diga besteiras, seus irmãos não serão sorteados. Esse ano nem iremos pedir tésseras, — Ela baixa o tom — seu pai garantiu um bom emprego e, além do mais, os meninos o têm ajudado na floresta, não é, meninos?

— Sim! — respondemos em uníssono.

Pego um pão e o mergulho no café.

Após o café da manhã todos foram se preparar para a colheita em seus quartos. Exceto a Circe, ela ficou importunando meu pai pedindo a ele para colocar meu nome 42 vezes nas tésseras.

Circe é uma garota má, de 12 anos, tem cabelos pretos e olhos castanhos, assim como todos da família, ela sempre anda com um livro embaixo do braço, adora margaridas e geleia de morango. Nessa colheita ela estará lá, pela primeira vez, com seu nome entre os milhares.

Na minha cama encontro o par de roupa que vou usar, como na tradição, nos últimos quatro anos eu sempre usei uma camisa branca de manga longa e uma calça preta, os sapatos de couro já me davam calos, mas minha mãe ama tanto eles que eu não tive coragem de jogá-los fora.

Pego uma cueca, e a toalha, e entro no banheiro. Tiro a roupa e ligo o fraco chuveiro, que chia e geme quando solta água. Entro embaixo do chuveiro e deixo o fino fluxo de água que sai dele percorrer pelas minhas costas, apoio a cabeça na parede e fico pensando sobre o longo dia que terei pela frente.

Após tomar banho, eu visto a roupa. Ponho alguns maços de algodão na ponta do sapato para não criar calos e passo um perfume de madeira no pescoço. Desabotoo a calça e enfio a camisa por dentro dela. Meus cabelos pretos nunca ficam arrumados, mesmo que eu use o pote todo de gel, sempre estarão bagunçados. Me olho no espelho.

— É, — digo — Até que não estou tão mal assim. — arrumo a gola da camisa.

Um cara alto entra no quarto. Ele se chama Galileu. Trabalha como lenhador em uma empresa que exporta madeira para a capital e é meu pai. Ele está usando seus sapatos novos, a calça é larga demais e a camisa branca aparenta ser de um tamanho menor, sua barriga saliente de lenhador de meia idade luta para sair dela.

— Oi, filho, ansioso?

— Sempre. — digo — Espero que meu nome não seja sorteado.

Me sento na cama.

— Não será! Eu tenho certeza disso... — Disse se aproximando de mim. E bagunça meus cachos — Seus cabelos são mais rebeldes que qualquer levante ocorrido na capital.

Ele sorri, seu sorriso é encantadoramente contagiante, ele traz uma sensação de satisfação para quem o vê. Eu trocaria qualquer coisa — até mesmo a Circe — para ter um sorriso como o dele.

Também sorrio. Me levanto.

— Sr. Gal, não se esqueça de trocar de camisa, ela está um pouco... hm... pequena.

Ele se olha no espelho, faz uma careta e confirma o que eu disse, em seguida sai do quarto olhando de cabeça baixa para sua camisa.

Uma sombra miúda corre para dentro do meu quarto — Circe! — Suas mãos estão sujas de alguma tinta vermelha e seu rosto está pálido. Ela passa correndo por mim, quase me derrubando.

— O que houve Circe? O que você fez agora? Isso na sua mão é sangue?

— Não é da sua conta! — ela entra no banheiro e começa a lavar as mãos.

— Cir...

— Sai daqui! — ela me interrompe gritando. — Eu tenho que me arrumar!

Ela bate com a porta do banheiro na minha cara.

Nos últimos anos, minha querida irmã matou da forma mais brutal todos os animais de estimação que tivemos. O último foi o Bill, o gato, em uma bela manhã de domingo eu encontrei o corpo do bichano pendurado em uma árvore perto de casa. Depois disso foi decretado que não deveríamos ter, em hipótese alguma, qualquer bicho de estimação. Como, agora, não temos nenhum bicho de estimação, eu já posso imaginar de quem seja o sangue.

— Garota louca! — digo saindo do quarto.

Quando chego na sala todos estão sentados esperando pela Circe. Minha mãe e meu pai — que já estava com outra camisa — estão conversando algo sobre uma escola melhor para a gente e o Argos está escorado na porta tentando estancar com um lenço o sangramento de seu nariz.

Argos é o mais velho, mas o menos responsável. Ele sofre de dislexia, desde sempre ele têm sofrido por demorar a entender as piadas dos amigos, ou a explicação do professor. E desde sempre têm sofrido nas mãos da Circe, ela sempre faz o que quer com ele, pois ele acha que ela quer algum tipo de brincadeira, e por gostar muito dela, ele não recusa.

— Oh! Argos, o que foi isso? Foi a Circe? — vejo ela socando o forte, porém inofensivo Argos.

— Não, não. Eu... eu esbarrei com a cara na parede agora há pouco.

— Imagino... — Disse olhando para meus pais que estão focados na conversa. — Olha Argos, — falo sussurrando, para meus pais não escutarem, eu não quero uma briga em plena colheita, já é tensão demais no ar — eu sei que você gosta muito da Circy, mas você não pode admitir que ela faça isso com você! Além do mais, você é mais e velho e ela lhe deve respeito.

— Não, eu já disse, foi um acidente. Eu esbarrei na parede...

Um barulho veio da cozinha.

— Eaí gente, vamos? — Disse uma garotinha que usava um belo vestido branco que combinava perfeitamente com suas tranças negras e broches de margarida, o sorriso em seu rosto fez o meu medo da colheita parecer uma bobagem. Eu ainda podia ver o sangue do pobre Argos embaixo de suas unhas.

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