28

8.6K 833 243
                                    

Selene sonhou com Cindy e seu avô. Era um sonho bom, pacífico, em parte sonho, parte memória. Ela estava jogando futebol com a melhor amiga no campo verde próximo à casa do avô Rafael, tropeçando, caindo, rindo, sujando a roupa enquanto faziam vários gols improvisados. No entanto, a lembrança feriu o coração de Selene. Seu avô não estava mais lá e nem Cindy. Ambos foram embora.

Acordou com uma pequena gota d'água caindo em seu rosto. Fez uma careta antes de abrir os olhos e quando o fez, os fachos de luz matinal não incomodaram já que havia folhas púrpuras pendendo na abertura do teto inclinado. Ouviu a canção dos pássaros ao longe e alguns próximos. Suas mãos se tencionaram, sentindo alguma coisa enlaçar seus dedos. Selene piscou os olhos, procurando por Maze; seguiu o olhar para a mão onde situava o laço de seda branco, onde havia dedos próximos aos dela e ergueu a cabeça, visualizando o Exorcista. Ele estava dormindo sentado e um pouco inclinado, os joelhos unidos ao corpo, o antebraço direito apoiando-se nas pernas e a cabeça em cima, a mão esquerda segurando a de Selene.

Seu rosto esquentou ao lembrar da noite passada, do terror que passara e de quando o abraçou. Não aguentaria perde-lo, certamente, porém aquilo fazia com que o frio dançasse no estômago, o coração acelerado, quase estapeando o próprio rosto; Exorcistas não se importavam com Selecionados. Maze e Trinity. Tudo girava em torno daqueles dois pensamentos, tão aterrorizantes quanto a noite anterior.

Selene secou a gota que escorria em sua testa, levantou da macies sob o corpo, afastando a mão do Exorcista. O observou por um instante para se certificar que não iria acordar, embora os dedos dele se movimentaram conforme afastou. Engoliu em seco e caminhou até a escada, a madeira rangendo suavemente sob os pés descalços.

Com o máximo de cuidado para não despertar ninguém, Selene notou que Alya não estava na cama, nem aparentava que um dia esteve ali. Talvez esteja na cozinha, pensou ela, caminhando pelo quarto da mulher de beleza jovial. Desceu mais um lance de escadas e a viu remexer alguma coisa dentro de um pequeno pote lascado, segurando o que aparentava ser um galho pequeno grosso. Alya percebeu sua presença e virou o rosto, abrindo um sorriso.

- Gut yutria, Selene. - disse ela gentilmente. Usava uma camisola de alcinha de seda, incomum para aquele Mundo de acordo com o pensamento de Selene. O cabelo escuro e espesso estava solto em cascata nos ombros, os pés descalços.

- Seria um "bom dia"? - perguntou, aproximando-se de Alya.

- Ah, sim. - disse ela - Se sente melhor? As dores dos cortes amenizaram?

Selene levou a mão até o braço esquerdo. Não havia percebido que estava sem as ataduras, deixando o ferimento exposto. Olhou para ele e viu que ainda estava aberto, folhas minúsculas grudadas na pele. Não doía, no entanto, as lembranças horríveis a perturbava.

- Não doem agora. - respondeu, observando a mão de Alya ainda mexendo no galho - Obrigada por me ajudar. Obrigada por tudo.

Alya franziu a testa.

- Eu ainda me lembro de como os humanos sorriam quando agradeciam a alguém por uma ação feita. - murmurou a mulher, os olhos abaixados no pote. - Bom, nem todos são assim, não é?

Selene sentiu a garganta fechar, uma leve pontada agredindo o peito. Por que ela sorriria se uma das pessoas que mais amava acabara de morrer?

- Muito bem - Alya bateu o pote com o conteúdo esverdeado em cima do balcão - O que vocês chamam de café da manhã está quase pronto. Espero que o homem-armário lá de cima desça antes que acabemos com tudo.

Enquanto Alya se afastara para pegar formas ovais pequenas parecendo pães, Selene fixou os olhos nas cicatrizes de suas costas. Imaginou o que outrora estaria ali; houve alguma coisa para que fossem tão profundas. Olhou para as próprias cicatrizes, no braço no qual usou para tentar quebrar a barreira invisível, na barriga onde o demônio-pirata lhe havia atacado no Six Penn. Alya era uma Exilada, concluiu, fora condenada e as cicatrizes traziam uma história mais dolorosa. Por que ela fora expulsa do lugar de onde veio? Afinal, o que era Alya?

Elementais das Trevas - Os Cavaleiros do Inferno #2Onde histórias criam vida. Descubra agora