14 - Fim da Linha

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O coro de passarinhos anunciava a linda manhã de quinta-feira que se iniciava. De sobreaviso, os cinco competidores haviam se reunido em linha reta na sala de estar, como um batalhão à espera das ordens do sargento.

- Bom dia, amores. - Cinderela cantarolou com uma graciosidade forçada ao descer as escadas. - Eu espero que tenham dormido muito bem.

- Com licença. - Charles veio timidamente pelo corredor, atraindo as atenções. - O café da manhã está servido.

- Só um momento, Charles. - Cindy roubou a cena novamente. - Antes de qualquer coisa, eu tenho um comunicado importante a fazer. Eles terão a manhã livre para fazer o que bem entenderem.

Suspense.

- Júlio... - a voz dela carregava um pesar solene. - Eu abri minha casa a todos vocês, de boa vontade. Cuidei para que fossem tratados da melhor maneira possível e criassem um ambiente de convivência saudável. No entanto, desde o início do jogo, você só tem trazido confusão e intriga. Como fui ingênua, não? Afinal, jogos de verdade não se fazem com diplomacia.

Júlio engoliu em seco.

- Isso é uma crítica ou elogio?

- Ainda não terminei. - ela uniu as mãos e sorriu. - Eu andei refletindo desde a Roda da Sinceridade, e cheguei à conclusão de que não quero um troublemaker na minha vida.

Os rapazes se entreolharam. De seu canto, Charles lançou um olhar para Cindy, que continuava concentrada em seu pronunciamento.

 - Vamos ser francos, Júlio, você é um garoto. Não está preparado para a vida. - ela deu um passo titubeante na direção dele. - Muito menos para a vida a dois. O jogo continua... mas sem você.

Ele só conseguiu encará-la, boquiaberto.

- Está eliminado. Torço pela sua felicidade. Já mandei meus empregados arrumarem suas coisas. Se quiser ficar para o café da manhã...

Cindy indicou gentilmente o caminho da sala de jantar, mas ninguém se moveu. Depois de um momento de choque, Júlio se recusou a receber a despedida dos demais jogadores e disparou, mudo, escadaria acima.

Em seguida, os rapazes seguiram a dona da casa pelo corredor, mas Beto, o último da fila, foi subitamente abordado pelo mordomo.

 - Com licença, seu Roberto. - Charles disse suavemente, verificando se alguém os estava ouvindo. - Tenho um recado para o senhor.

Beto o encarou, as sobrancelhas arqueadas, o rosto tomado por uma expressão de indagação.

- A senhorita Ruth, secretária da Cristal Calçados, acabou de telefonar. Tinha algo a tratar com o senhor, mas avisei que estava indisponível. Creio que, se o tivesse colocado na linha, eu estaria expondo o senhor às penalidades do jogo. Afinal, como a própria dona Cinderela já disse, o contato com o mundo exterior lhes é restrito. - o mordomo olhou ao redor e baixou ainda mais o tom de voz. - Cumpri com minha obrigação de avisá-lo. Agora, quem decide o que fazer com a informação é o senhor. Com licença.

Charles desapareceu num segundo, deixando Beto em suspenso, mirando o telefone sem saber o que fazer.

- Alô?

- Alô, Ruth? - do outro lado da linha ouviu-se um sussurro desesperado. - Aqui é o Beto.

- Eu sei. - ela sorriu e andou pelo banheiro, o celular colado à orelha. - O mordomo te entregou o recado?

- Sim. E eu tô falando baixo porque não quero que ninguém me escute. - ele fez uma pausa. - Você sabe que essa ligação pode custar a minha cabeça, né?

- Não seja exagerado, Beto. No máximo, você vai ficar mais longe da sua paixão de adolescência. - ela se debruçou sobre o lavatório. - Mulher é o que não falta neste mundo.

- Fala logo o que você tem pra me dizer, Ruth. Eu não tenho muito tempo.

- Sabe o seu simpático e amável substituto? Pois é, ouvi dizer que ele tá querendo o seu couro...

- Quê? Como assim?

- O Márcio tá falando pra todo mundo que o adiantamento que você pagou pra ele foi insuficiente. - ela deu meia volta. - Ao que parece, ele tá disposto a ir até o inferno atrás de você pra te extorquir uma graninha a mais. Essa história chegou aos ouvidos da minha mãe, e eu fiquei boba quando soube.

Beto emudeceu.

- Não dá pra acreditar... - ele gaguejou um instante depois. - Que crápula!

- Você pode xingar do que quiser, mas eu tenho medo do que aquele homem é capaz de fazer.

Beto respirou fundo.

- E o que você sugere?

Ruth disfarçou quando a porta do banheiro se abriu, revelando a nova estagiária - que, pela expressão, estava menstruada ou, na melhor das hipóteses, extremamente apertada. Ela desapareceu como um flash numa das cabines.

- Venha me encontrar no refeitório da empresa, ao meio-dia. - Ruth prosseguiu, um tom abaixo. - É melhor que você tenha uma graninha extra.

"Levo vida de empreguete / Eu pego às sete / Fim de semana é salto alto e ver no que vai dar..."

Lúcia entrou na requintada suíte de Lucas Taveirós rodopiando com a vassoura. Cantarolava baixo para não incomodar Gigi (o patrão era mais tolerante). Tamanha alegria tinha um motivo: ela finalmente conseguira um emprego fixo em casa de bacana. Seu padrão de vida melhoraria consideravelmente.

Depois de varrer o chão, voltou ao quarto com um cesto para finalizar sua "geral" comemorativa. Pegou alguns casacos do armário que precisavam ser passados e, então, voltou-se para a cômoda.

Abriu a primeira gaveta e se deparou com dezenas de camisas impecavelmente limpas.  Sorriu, agradeceu intimamente pelo perfeccionismo de Lucas e continuou vasculhando. E eis que, na gaveta das meias, algo lhe chamou a atenção.

Uma caixinha de madeira, revestida de um tecido branco que quase a camuflava no fundo da gaveta. Lúcia não se lembrava de já tê-la visto... provavelmente costumava ser guardada em outro lugar. Dominada pela curiosidade, a empregada olhou para os dois lados antes de levar a mão até a tampa da caixa.

Um punhado de papeis de carta saltou diante de seus olhos. Retirando cuidadosamente um deles, ela logo notou que se tratava de um bilhete manuscrito. Pela caligrafia, fora escrito por Lucas.

"Vai / Meu amor vai também / Mas volta / Para o lar de dores e prazeres / Da lucidez doente/ Que só enxerga a nós dois // Vai, segue o teu caminho sem pressa / Regressarás / Eu sei, ainda que peças / Ainda que tudo impeça // Sai / Sem deixar para trás / Abandona / Guardando tudo contigo // Vai, mas volta / Ainda que tudo impeça / Meu amor te espera".

Lúcia leu o poema com um brilho piedoso nos olhos. Encantada, retirou outro papel de carta. E outro, e mais outro. Cada um deles transbordava poesia, romantismo e resquícios de uma história de amor que, por dedução, não tivera um final feliz.

Jim empunhava o telefone celular com determinação. Mordendo levemente a língua, ele esperava pelo melhor ângulo para registrar a prova fatal.

Beto deixara a casa cheio de mistérios. Provavelmente, desejava que ninguém notasse a sua ausência. Para tanto contava com a cobertura de Charles, mas não conseguiria escapar aos olhos de águia de Jim.

Bastou uma pequena desconfiança para que o modelo o seguisse pelo jardim. Escondido atrás de um cipreste, ele aguardava o momento exato em que Beto atravessasse o grande portão de ferro.

- Primeiro o playboy, agora o plebeu... - ele sorriu ao tirar a foto. - É, parece que esse jogo pode começar a ficar interessante, afinal.

Gato BorralheiroOnde histórias criam vida. Descubra agora