03 - O Passado Presente

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Cindy respirou pacientemente quando a secretária e sua cara de cachorro abandonado surgiram à porta, lutando para reprimir qualquer impulso que a tirasse dos eixos.

 - Acabei de ligar pro chaveiro. - Ruth a encarou com uma expressão, no mínimo, suspeita.

- A gente precisa ter uma conversa. - Cindy respondeu com a elegância e objetividade que costumava tratar dos assuntos desagradáveis. - Senta aí, por favor.

Ruth arrastou-se até a escrivaninha, prevendo algumas possibilidades: ela sairia dali advertida, demitida ou mesmo presa. Nenhuma delas, no entanto, lhe dava algum tipo de esperança.

- Ontem à noite, você foi vista diante da minha porta. Em atitude suspeita, segundo os seguranças... - ela fez uma pausa para respirar. - Eu vou lhe dar o benefício da dúvida e permitir que se explique.

Ruth engoliu em seco.

- Eu... eu esqueci uma coisa aqui ontem. Bobagem. 

- E por que não me ligou?

- Eu não iria incomodar você tarde da noite por tão pouco. Cindy, você pode não se lembrar, mas tenho uma cópia da antiga chave. Só que eu não fazia ideia de que a fechadura havia sido trocada. O que parece um absurdo, aliás, uma vez que eu sou sua secretária.

- Fiz tudo na surdina, mesmo, exatamente para me precaver de situações constrangedoras como esta. Você me conhece há tanto tempo, Ruth, já deveria estar acostumada e esses meus arroubos. Aquela fechadura não era trocada desde que a empresa existe! - ela pôs a mão sobre a testa. -Você acha que isso justifica um arrombamento?!

- Não! - a secretária sentiu suas orelhas queimarem. - Eu mal toquei na porta. Ela simplesmente cedeu. Eu sei que não posso provar, mas... mas posso dar minha palavra. Não arrombei nada!

- Eu adoraria acreditar nisso, só que chega a ser um insulto à minha inteligência. - dizendo isso, Cindy puxou uma ficha de uma gaveta. - Sinto muito, Ruth. Nossa relação vai além da profissional, mas um incidente como esse não pode passar em branco. Eu me vejo obrigada a lhe dar uma advertência.

Resignada, Ruth assinou na linha indicada.

- E, apenas pra ter um pouco de transparência desta vez... - Cindy pôs-se em pé, alisando as pantalonas de seda cinza. - Aviso desde já que todas as fechaduras da empresa serão devidamente substituídas por um sistema eletrônico. Nada pessoal. Questão de segurança.

Ruth fechou a porta atrás de si com um estrondo, a despeito de como os rabugentos vizinhos de apartamento reagiriam.

- Ué! - dona Zilda desviou-se de sua revista de culinária. - Chegou cedo, filha.

- A chefe me dispensou mais cedo hoje. - Ruth tinha um notável tom de desdém. - E a senhora, não deveria estar trabalhando?

- Meu dia de folga mudou. - ela levantou do sofá. - Será que eu posso saber o porquê da raiva?

- Cinderela. Quem mais?

Ruth largou a bolsa sobre a mesa e soltou os cabelos, emitindo um suspiro penetrante.

- Acredita que um maluco tentou invadir a sala dela ontem à noite, e a princesinha deu pra desconfiar de mim?!

- Pudera, você trabalha bem ao lado.

Ruth voltou-se para a mãe com os olhos injetados.

- Não é possível que você ainda a defenda depois disso!

- Eu não estou defendendo ninguém, minha filha. Só tô dizendo que, se eu estivesse no lugar dela, desconfiaria até das rachaduras das paredes! - Zilda passou a mão pelos cabelos. - Administrar uma empresa como a Cristal Calçados deve mexer muito com a cabeça de alguém.

- Uma dondoca que nasceu em berço de ouro e que sempre fez questão de me humilhar, desde quando nos conhecemos. Isso é o que ela é!

Zilda revirou os olhos, cansada daquele velho discurso repetido à exaustão.

- Você não acha que tá exagerando, não?

- Desde o tempo em que a gente estudava juntas no Colégio Libertae, aquela vadia era melhor do que eu em tudo! - Ruth parou diante da janela e se pôs a observar o trânsito lá embaixo. - Mais rica, mais bonita, mais inteligente, mais popular... Ela sabia muito bem disso, e fazia questão de esfregar na minha cara o quanto era perfeita. Eu sempre fui mais eu, é claro, mas não dava pra competir com ela. A Cindy conquistava tudo o que bem podia ser meu, se tivesse um pouco mais de sorte na vida. Até namorado...

Dona Zilda assomou atrás dela e, com cautela, a envolveu em seus braços.

- Filha, aquele rapaz não era pra você. Ele e a Cinderela tinham uma relação tão pura, tão sincera... Eu cheguei mesmo a acreditar que aquele amor de adolescência fosse terminar no altar.

- Pode até ser, mas eu o vi primeiro. Não quero ter que remoer isso, mas a Cindy não teve a menor consideração por mim. Como minha melhor amiga, ela deveria ter percebido. - ela suspirou. - Mas não. Ela preferiu colocar os sentimentos dela à frente dos meus, como sempre.

Ruth aceitou o abraço da mãe, mesmo tomada pelo rancor. Parecia uma compensação simbólica pelos danos emocionais que sempre atribuíra a Cindy.

Uma rápida troca de palavras, e Zilda retirou-se para a cozinha. Ruth aguardou alguns segundos e olhou para a bolsa sobre a mesa. Aproximou-se dela com afoiteza e enfiou a mão em seu interior. Depois de algus segundos desnecessariamente dramáticos, retirou um pen drive.

- Eu ainda descubro a senha daquele computador... - ela murmurou com expressão de vilã de dramalhão mexicano. - Ah, se descubro!

 - Boa tarde, povo. - a voz doce de Cindy ecoou pela sala de estar, assim que Charles lhe abriu a porta. - Tudo sob controle?

Nice, que descia as escadas com um par de scarpins nas mãos, lançou-lhe um olhar de cumplicidade.

- O que não dá pra controlar é a sua paixão por sapatos, não é?

- Herança do papai. - Cindy sorriu. - Não se trata simplesmente de adorar sapatos. Eu daria o dedo mindinho por um Carmen Steffens!

Rindo, Nice se afastou em direção à lavanderia. Cindy não era uma patroa das mais exigentes, mas gostava que sua coleção de sapatos fosse cuidadosamente tratada. Portanto, Nice tinha nas mãos a exclusividade da tarefa.

Cindy ainda observava a figura da doméstica quando Charles se aproximou suavemente.

- Com licença, Cindy. - ele lhe estendeu um envelope elegante. - Dona Jaqueline esteve aqui pela tarde e pediu que lhe entregasse isto.

Ela abriu a correspondência com curiosidade.

- Convite de casamento? - Cindy fitou o conteúdo do envelope com a testa franzida. - Mas por que ela não esperou que eu chegasse?

- Disse que tinha uma reunião importantíssima com a tal decoradora. Insisti, mas ela parecia mesmo apressada.

- Ela está é louca! - Cindy pensou alto. - Nem acertou todos os detalhes da cerimônia e já tá enviando convites.

Um silêncio misterioso pairou entre os dois. Charles inquiria com os olhos, mas Cindy não dava pistas do que se passava por sua cabeça.

- Dá licença, Charles. - ela finalmente se pronunciou, decidida, deixando o convite de lado. - Eu tenho algo de suma importância pra fazer.

E então, o mordomo assistiu, estarrecido, enquanto Cinderela subia as escadas como quem acabara de tomar a decisão que mudaria a sua vida.

Bom, talvez tivesse.

Gato BorralheiroOnde histórias criam vida. Descubra agora