19 - De Coração Aberto

689 38 4
                                    

 - Calma aí. - Debby aceitou a limonada oferecida por Charles, hesitante, enquanto fitava o trio de rapazes. - Ficou maluca, Cinderela?! É melhor alguém me segurar, ou eu ligo pra clínica psiquiátrica mais próxima!

- Não seja exagerada, Debby. - Cindy colocou uma mexa de cabelo atrás da orelha. - O que você esperava de mim? Uma mulherzinha obsoleta que se casa por conveniências sociais e econômicas? Não cheguei onde estou pra voltar atrás e seguir os trilhos da opinião pública.

Jim, Manuel e Beto captaram a deixa e desapareceram enquanto as duas se encaravam intensamente.

- Não se trata de machismo ou opinião pública, minha amiga. - Debby bebeu um gole e largou o copo sobre a mesa de centro, pecando nos modos. - Se trata de casamento. É claro que você não tem noção do que isso significa!

- Você diz isso porque é a protagonista de uma linda história de amor, com príncipe encantado, amor verdadeiro e tudo o mais. - Cindy fez uma pausa para se recompor. - Eu só tô jogando com as peças que estão à minha disposição, e elas são diferentes das suas. Mas o objetivo é o mesmo: a felicidade.

- Cindy... - Debby acariciou-lhe a mão ternamente. - O que está havendo com você? Você não precisa disso, minha amiga. Não precisa descer tão baixo. Você acha que todos esses homens estão aqui porque amam você... ou pelo seu dinheiro? Ou por status, ou qualquer outra coisa?

Cindy suspirou alto. Seus olhos adquiriram um brilho melancólico.

- O que você sugere que eu faça?

- Sugiro que siga o seu coração. - Debby lançou-lhe um sorriso piedoso. - Nem tudo na vida pode ser racionalizado, selecionado, calculado... Às vezes só é preciso deixar as coisas fluírem. Na verdade, quando você dá vazão ao seu emocional, quando se permite respirar e amar... amar de verdade, sem joguinhos, sem ilusões, mas de corpo e alma... Você dificilmente erra.

Deborah não desviava os olhos da amiga, e logo soube que suas palavras haviam surtido algum efeito. Ao sinal da primeira lágrima a cortar o rosto de Cinderela, tudo o que ela fez foi envolvê-la num abraço caloroso. Um gesto de amizade que há muito tempo não trocavam.

Debruçada numa das mesas, Regiane refletiu sobre o que aprendera na ausência do irmão: servir os clientes do Alma Boêmia sozinha - sem contar as cantadas e todo tipo de situação constrangedora a que uma garçonete indefesa está sujeita - se mostrava cada dia mais uma tarefa bem difícil.

Desde que se prestara a auxiliar o tio Sérgio, ela viu sua vida social e desempenho escolar arrastarem-se ladeira abaixo. Talvez a situação ainda não tivesse chegado a níveis críticos, mas já dava pequenos sinais no dia-a-dia. A garota se lembrou, com uma pontinha de amargura, da noite em que fora obrigada a deixar suas amigas na mão para trabalhar no Alma Boêmia... Era uma noite estranhamente bem movimentada. Também ponderou sobre a tarde em que tentara, sem sucesso, conciliar o atendimento às mesas com os estudos para uma prova de Matemática. A mesma em que obtivera uma nota ridícula, o que lhe rendera uma recuperação.

Mas não foi exatamente por isso que Regiane se pôs a olhar para o horizonte, ignorando todo o resto à sua volta.

- Tudo bem aí? - Sérgio surgiu do nada para arrancá-la do transe. Sua cara não era de muitos amigos. - Regiane, você tem trabalho pela frente. Não é porque o bar tá praticamente vazio que eu vou admitir moleza dos meus funcionários. Ânimo, querida!

- Acontece que eu não sou sua funcionária. - a garota respondeu, com mais rispidez  do que pretendia. - Pô, tio, será que você não pode aliviar um minuto? Deixei até de ir pro colégio pra ajudar aqui no bar.

- Hoje é reunião de pais, que eu sei. - ele deu um sorriso sarcástico. - Eu não tenho esse coração de pedra que você imagina, não. Você tem andado tristinha ultimamente, e tem alguma coisa além de cansaço nisso. Quer dividir alguma coisa com o seu tio?

- Sinto falta do Manuel. - Regiane disparou, olhando-o nos olhos. - É isso. De alguma maneira, ele fazia a minha vida... especial, sabe? O jeito dele, a música dele, a alegria... No fim das contas, ele é o meu melhor amigo. E agora eu não faço ideia de quando ele vai voltar. Parece que ele foi sugado por um buraco negro, entende, tio? Essa falta de notícias me angustia um pouco.

Ela continuou encarando o tio, que por um breve momento soergueu o canto dos lábios e, ao mesmo tempo, arqueou as sobrancelhas num gesto piedoso. Regiane devolveu-lhe o esboço de sorriso ao receber um afago paternal nas costas.

- Não pensei que diria isso, querida, mas também sinto falta dele. - Sérgio afastou-se, tirando a bandeja da mesa e estendendo-a diante de Regiane. - Apesar de tudo, Manuel é um bom garçom. Agora, se não tiver nada melhor pra fazer, seria muito bom voltar ao trabalho.

Gigi bebeu a taça de água mineral Perrier lentamente enquanto analisava o irmão, na outra extremidade da mesa. A fisionomia abatida e introspectiva de Lucas estava além dos parâmetros  cotidianos. Era simplesmente irritante vê-lo daquela maneira na hora do almoço.

- Então... como foi seu dia? - ela perguntou, numa tentativa de tornar o momento menos tedioso. - Algum bafão digno de primeira página?

- Quem me dera. - ele murmurou, tocando finalmente a comida. - Nada além de festas e lançamentos monótonos. Minha vida está realmente precisando de um pouco de emoção.

- Acho que ontem já tivemos uma amostra grátis disso. - Gigi comentou com uma naturalidade forçada. - Que papel ridículo, Lucas. Na frente da empregada! Depois eu é que sou a desvairada da família.

- Chega, Gigi. - ele pigarreou. - Não quero falar sobre isso.

- Pois eu acho ótimo. Aquela criatura tosca já ganhou holofotes demais na nossa vida.

Ligeiramente arrependida, Gigi engoliu em seco assim que Lucas levantou de supetão, lançando-se sobre a mesa.

- "Criatura tosca"?! - ele asseverou. - A Zilda, definitivamente, não merece ser tratada desse jeito. Retire o que disse!

- Qual é o seu problema, Lucas? - a perua também pôs-se em pé. - Não foi você que abandonou a mulher grávida e nunca quis saber do filho?! Não queira dar lições de moral!

Gigi encarou o irmão até que, sem argumentos, ele jogou o guardanapo de pano por cima do prato e deixou a sala de jantar a passos firmes. E, então, uma onde de remorso a invadiu.

Cindy pôs os pés na sala de estar sob os olhares atônitos de Beto, Jim e Manuel. Pudera, já que um mini tubinho de paetês não era exatamente o tipo de look com o qual os rapazes estavam acostumados. Pelo menos, não no corpo dela. Enfim, depois de uma tarde burocrática na Cristal Calçados, seus hormônios pareciam rogar por uma boa dose de sensualidade.

- Uau! - Jim soltou um assovio. - Mal posso esperar pra saber como será a prova desta noite.

- Cindy, sei que ouve isso milhões de vezes, todos os dias, mas você tá simplesmente linda! - Manuel sorriu. - Com todo o respeito, é claro.

- Esqueçam esse negócio de respeito! - Cinderela fez uma pausa, e então riu. - Quero dizer, "formalidades". É ótimo poder descontrair de vez em quando. Eu espero que vocês estejam com os tanques cheios, guys... porque hoje a gente vai pra balada!

Gato BorralheiroOnde histórias criam vida. Descubra agora