Prólogo

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Cinderela observava atentamente o nada, enquanto o vapor do chá verde lhe lambia o rosto.

- Só falta oficializar o contrato. - Jaque anunciava com orgulho incontido. - A decoradora já me garantiu que dará o melhor de si para que a nossa festa seja uma perfeição. Mais do que isso, um acontecimento! Eu não esquento a cabeça. A mulher é um gênio, já saiu em revista internacional e tudo.

- Quem deve esquentar a cabeça é o Antonio, né? - disse Debby, beliscando um salgadinho. - Com certeza, é ele quem vai arcar com tudo.

- Engano seu, queridinha. - Jaque ainda se encontrava extasiada sob o efeito da projeção de seu casamento faraônico. - Aquele homem praticamente usa notas de cem dólares pra assoar o nariz! Recursos não lhe faltam. Pode ter certeza que dinheiro não vai ser motivo pra ele esquentar a cabeça.

Cinderela sorveu um gole, esforçando-se para chamar a menor atenção possível.

- Você, sim, deve se preocupar. - continuou Jaqueline, não com desprezo, mas com sua acidez característica. - Noivar com um frentista requer um planejamento financeiro meticuloso.

Debby sorriu, entrando no jogo.

- Em primeiro lugar, eu tenho a minha própria renda, tá legal? - ela limpou os dedos engordurados com um guardanapo. - Em segundo lugar, o Tiago não é frentista; ele está frentista. Tão logo ele conclua a faculdade de Direito, a situação muda.

- "Universidade pública", você quer dizer. - Mel fez sua cara de nojo típica. - Deve ter muito amor pra querer se casar com alguém da classe C, não, amiga?

- Isso a gente tem de sobra. - Debby respondeu sem perder a linha. - E, além do mais, o Tiago não é tão pobre quanto você pensa. Os pais dele vivem sem grandes luxos, é verdade, mas é um padrão de vida estável.

- Problema seu. Eu não me contento com a estabilidade. - Mel fez uma pausa para soprar o chá. - Dinheiro é que é bom, e eu a-do-ro. 

Cinderela só pareceu voltar à realidade quando o fluxo de vapor reduzira-se a um fio insignificante.

- Mas não pensem vocês que sou interesseira. - seguiu Mel, imaginando o número de calorias que mandaria para dentro ao pinçar um biscoito de chocolate. - Minha relação com Blake não se resume ao material. Ele é divertido, fiel, romântico, tem um emprego digno...

- DJ? - Ana não conseguiu evitar o riso. - Desculpa, amiga, mas isso não me passa seriedade alguma. Tá, pode até ser divertido e lucrativo, mas não cola. Ele vive nos Estados Unidos, pulando de uma casa noturna a outra... Sei lá, eu não saberia manter o controle.

- Ele não é apenas um DJ! - Mel estava visivelmente ofendida. - É uma celebridade, meu amor! Não dou cinco meses pra que ele desbanque David Guetta.

- O seu manobrista de pick-ups pouco me interessa, Mel. - Ana suspirou. - O único homem que merece minha atenção é o Davi. Vocês precisam conhecê-lo!

- De tanto que você fala dele, aposto que o conhecemos melhor que você mesma. - Jaque mexeu-se na poltrona. - Joalheiro. Trinta anos. Um metro e oitenta. Covinhas. Cachinhos. Judeu...

- Não mais. - Ana a interrompeu com sua suavidade habitual. Todos os olhares na sala convergiram para si. - Nós nos amamos muito, e tanto o Davi quanto eu estamos dispostos a colocar isso acima de qualquer religião. Ele é um príncipe! Disse que deixaria tudo por mim.

Um silêncio pairou sobre a sala de estar pelos instantes seguintes. As amigas teriam dado seu tradicional grito em uníssono, não fosse por Cinderela, que com um pequeno pigarro atraiu todas as atenções.

- Tem mais chá na cozinha. - ela se levantou e foi até a mesinha de centro. - Alguém quer?

Elas apenas se entreolharam. 

Cinderela não esperou pela resposta. Reuniu as xícaras vazias sobre uma bandeja, ao redor do bule de porcelana, murmurou "com licença" e deu meia-volta.

Ao retornar da cozinha, ela se deparou com Jaque, Debby, Mel e Ana de pé, alinhadas. Cada qual segurava sua bolsa de maneira que denotava seu constrangimento.

- O papo foi bom, mas a gente precisa ir. - disse Jaque com um meio-sorriso. - Preciso falar com a decoradora ainda hoje.

- Até a próxima, Cindy. - Ana se aproximou. - Marquei um encontro com o Davi.

- Fiquei de pegar o Tiago na faculdade. - era a vez de Debby. - Se cuida, amiga.

Por fim, Mel parou diante da dona da casa.

- Eu... eu também preciso ir. - ela gaguejou, amaldiçoando internamente a falta de uma desculpa. - A gente se fala, hein? See you!

Calmo e discreto como uma estátua, o mordomo as acompanhou até a saída. Então, despido da impessoalidade, aproximou-se de Cindy.

- Foi uma tarde longa, não? - ele disse enquanto reunia o que restara do chá entre amigas. - Praticamente uma despedida de solteiras, se me permite o comentário.

Cinderela foi até ele como uma criança pedindo colo, e o abraçou pelas costas. 

- Você não precisa de permissão pra nada, Charles. - ela sorriu. - Dá cá um abraço, "vovô".

Eles riram.

- Cinderela Ramos de Moraes... - ele declamou com afeto, acariciando-lhe a mão macia. - O tempo passa, não é?

- E a vida, por sua vez, não é nenhum conto de fadas. - ela sorriu, melancólica. - Ah, eu só queria um pouquinho de magia. Não muito, só o suficiente. Nada que seja pedir de mais.

Charles retribuiu-lhe o sorriso.

- Ué, a sua vida não é mágica? - ele a fitou insinuante. - A meu ver, tudo que falta é um "viveram felizes para sempre".

Cindy desviou o olhar e tirou a franja dos olhos.

- Eu não poderia ser mais feliz, Charles. - ela tomou-lhe as mãos. - Para todo o sempre.

Gato BorralheiroOnde histórias criam vida. Descubra agora