15 - Lembranças

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Beto suava frio no refeitório da Cristal Calçados. Conhecia Márcio de outros carnavais, foram colegas de faculdade. Estava ciente de seu temperamento intratável, muitas vezes obsessivo. Se ele queria dinheiro, daria um jeito de consegui-lo. O temor pela possibilidade de ser descoberto por Cinderela só aumentava a tensão.

- Sinto muito, Beto. - do lado oposto da mesa, Ruth deixava transparecer certa voluptuosidade. - Não quis te alarmar à toa. Você parece mais nervoso do que imaginei.

- A Cindy não pode me ver aqui, ouviu? - ele falou em voz baixa, retirando uma quantia considerável de dinheiro do bolso. - Eu espero que o Márcio se dê por satisfeito.

- Por que tocar no nome desse imbecil? - Ruth mordeu o lábio inferior de maneira supostamente sexy. - Vamos falar sobre a gente. Não quer saber como vai a sua amiga de tantos anos?

- Desculpa, Ruth, mas eu tô sem tempo pra papo furado. Você promete que entrega esse dinheiro pro Márcio e me mantém infomado?

- Do jeito que você fala, até parece que estamos numa missão secreta! - ela sorriu. - Prometo, James Bond. Agora, vamos esquecer esse assunto...

- Valeu, Ruth. - ele levantou, sem nem mesmo terminar a refeição. - A gente se vê. Tchau, tchau. Ah, e não deixa a Cindy saber que eu estive aqui!

A secretária assistiu, com cara de paisagem, sua "presa" saindo às pressas do refeitório sem olhar para trás. Mas ela não poderia deixar Cinderela levar a melhor novamente. Não, mesmo.

Lúcia estancou diante do arco que dava para a sala de estar, a caixinha branca nas mãos. Ali, numa poltrona rente à lareira, Lucas contemplava o vazio ao som de Chopin. Parecia enleado em lembranças, alheio ao mundo real... A amargura e a melancolia transbordavam-lhe os olhos.

- O que está fazendo com isso? - ele pareceu sair do transe repentinamente, fixando as atenções na caixa. - Guardei essa caixa por um bom motivo.

- Eu imagino, Seu Lucas. - a voz de Lúcia trazia uma ternura maternal. - Depois que descobri esta caixa, descobri também um pouco mais sobre o senhor. A vida é mesmo uma caixinha de surpresas, não é?

- E também uma coleção de segredos. - Lucas esboçou um sorriso enigmático. - Alguns deles não cabem ser violados.

A empregada não respondeu. Em vez disso, moveu a tampa delicadamente e remexeu o interior da caixa, retirando dali um papel de carta rosa.

"Vida / Ó, vida dividida / Bandida / A doce e amarga lida / Vidas, minha e tua // Fere / Ó, fere e consola / Enrola / A fábrica de memórias / Memórias, minha e tua // Vida vem, vida vai / Há coisa que chega e daqui não sai / Há o meu ser e a tua formosura / Eterna candura / Amor, o meu e o teu // Fé / Ó fé, qual é / O deus dos que se amam / Dos corações que pulsam e inflamam / Do fogo, crente e ateu / Amor, o meu e o teu..."

 Lúcia ergueu os olhos do manuscrito e encarou novamente a figura fragilizada de Lucas.

Ele parecia não enxergar nada à sua frente, a não ser uma vaga lembrança. Uma lágrima escorrera-lhe pela face enrugada.

- Tire isso daqui. - ele murmurou. - É uma ordem, Lúcia. Não quero ser atormentado.

- E eu que cheguei a pensar que o senhor nunca tivesse amado na vida... - Lúcia simplesmente não o via mais como o patrão velho e distante, mas como um ser humano que inspirava certos cuidados. -  Fui meio idiota, né? Desculpa. Eu tô muito sensibilizada.

Lucas caminhou até ela e tomou-lhe a caixa.

- Descobriu o meu ponto fraco, não é? - ele pressionou a tampa sobre a profusão de bilhetes. - Eu admito, foi uma história complicada. Foram os momentos mais intensos e tempestuosos da minha vida. - deu meia volta. - Tudo o que restou foram lembranças e arrependimentos.

Gato BorralheiroOnde histórias criam vida. Descubra agora