04 - O Jogo

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Cindy fechara-se em seu quarto à chave. Não queria correr o risco de ser interrompida, acontecesse o que acontecesse. A atitude que tomaria devia ser executada ao calor do momento.

- "...Conto com a sua presença". - ela teclava freneticamente em seu laptop. - "Beijos pródigos, Cindy".

Com um sorriso misterioso, ela pressionou o botão "Enviar". E então, tomada por uma súbita onda de excitação, deixou escapar um guincho.

Júlio ouviu os passos da esposa no corredor, mas não se deteve a saborear a última edição da "Erottica", nem mesmo se preocupou em esconder a revista debaixo da almofada franjada assim que a esposa surgiu no arco que dava para a sala de estar. A perua certamente estaria ocupada demais narrando suas peripécias consumistas para se preocupar com funkeiras seminuas em borracharias fictícias.

- Julinho, cheguei! - Gigi bradou com afetação sob um mar de sacolas. - Você não imagina o que acabou de inaugurar lá no shopping!

Ele sequer se preocupou em fingir interesse. Gigi não notaria, de qualquer forma.

- ... Servem aquele negócio estranho e dizem que é champagne, mas euzinha sei muito bem que aquilo não passa de um espumante bem apresentado! - Júlio só ouvia frases soltas, mantendo sua atenção fixa na modelo nua. - Mas não me incomodo. A loja é boa, pelo menos, e é isso que importa.

Gigi continuou movendo os lábios como uma marionete cujo vocabulário era muito para pouco significado, enquanto Júlio não dava verdadeira atenção a nada. 

Quando a perua finalmente pareceu satisfeita, sorriu para o marido e dirigiu-se para o corredor do apartamento, deixando um rastro nauseante de perfume.

- Por quê? Por quê? - Júlio suplicou, elevando as mãos aos céus. - Por que eu não fiquei na minha, me formei e arrumei um emprego decente? Mas não, tive que me casar com a tal Gilda Taveirós e levar na cabeça! Se arrependimento matasse, meu Deus... eu matava a perua, servia com laranjas e adiantava o meu Natal!

"Você jogou fora / A minha ilusão / A louca paixão / É tarde demais..."

Apesar de cantar com a naturalidade de um artista experiente, Manuel deixava transparecer pequenos sinais de insegurança ao correr os olhos pelo bar, desejando internamente que o tio não aparecesse de uma hora para outra para cortar-lhe o barato.

Não que tivesse talentos extraordinários ou qualquer perspectiva, mas Manuel sentia no pagode um prazer vital. Nada o fazia sentir tão autêntico, comunicativo e feliz. No fundo - o bastante para ter consciência disso -, sonhava em largar o emprego de garçom no bar do tio e cantar profissionalmente. Entretanto, tinha os dois pés devidamente firmes no chão para saber que este tipo de coisa requer planos e dedicação apaixonada.

A canção chegou ao fim sob os aplausos moderados da plateia. Manuel poderia ficar ali fingindo modéstia por mais alguns minutos, e até se arriscaria a puxar o último sucesso do Thiaguinho, não fosse pela figura esbaforida da irmã que surgira de repente e se aproximava do palco.

- O tio Sérgio tá chegando! - Regiane tentou não parecer alarmada, lançando sorrisos amarelos aos clientes.

Manuel engoliu em seco e proferiu um último agradecimento antes de deixar o palco, disfarçando o nervosismo.

- Tá doida, é? - ele arrastou Regiane para a entrada. - Ele não disse que só ia voltar no final do dia?

- Até parece que não conhece o tio Sérgio... - a adolescente suspirou. - Ele prefere qualquer coisa a deixar o bar nas tuas mãos. Se ele disse que ia voltar tarde ou não disse, eu não sei, só sei que vi o próprio pela janela de um táxi quando tava vindo pra cá.

- Aliás, o que a senhorita faz aqui? Isso aqui não é ambiente pra criança!

Ela o pulverizou com os olhos e deu meia volta.

- Salta um queijo quente pra mim e uma latinha de Coca-Cola. - ela o encarou com deboche. - Não vai demorar como da última vez, hein?

Jim apagou o cigarro no parapeito úmido da janela. O clima em Porto Alegre estava frio, e ele não era dado a contemplações matinais, mas sentira que devia parar por um momento e se debruçar sobre a paisagem neblinosa para fazer conjecturas.

O nome de Cinderela brilhava na tela do laptop, no topo de uma grande lista de e-mails. Depois do que acontecera, Jim acreditava que eles nunca iriam se esbarrar novamente. "O destino é mesmo um grande safado", ele pensou, fechando a janela.

Dirigiu-se até o computador e, com um sorriso malicioso, clicou sobre a mensagem sem assunto.

"Hello babe,

Surpreso? Eu imaginei que ficaria. Quero saber como está, mas antes preciso dar o meu recado. Sem julgamentos, please. Se considerar um absurdo, basta ignorar. (...)"

"(...) Eu tenho uma proposta, e espero que goste de jogar. Me explico... (...)"

Do alto de sua seriedade, Fernando divagava em frente ao monitor, perguntando-se o que estaria se passando pela mente imprevisível da ex-namorada.

"(...) O que passamos juntos deve ter deixado marcas em você. Pois bem, em mim também. Aff, mal posso imaginar o quão meloso isto soou. Sei que não está acreditando em uma palavra que seja, por isso vou pular essa parte. É melhor ser direta, porque não consigo imaginar uma maneira sutil e natural de colocar meus termos.

O que lhe proponho é um jogo. Um jogo que exige mente e peito abertos, e é por isso que compreenderei uma eventual hesitação. Estou decidida a mudar meu status de relacionamento, isto é, juntar as escovas de dente (argh! quem foi o inventor da expressão?) com alguém, e acredito que tudo já está a meio caminho andado. O que está faltando é nada menos que... o noivo!

Mas não por muito tempo. Tudo dependerá da sua resposta. Julga-se apto a formar um lar com esta que vos escreve? Estaria disposto a superar tudo - e todos - pela minha mão em casamento? Pode parecer arrogante, mas pense a respeito.

Caso a sua resposta seja 'SIM' - assim espero -, a partida terá início na segunda-feira próxima, às 20h30, em minha residência. Em caso de dúvida, segue abaixo o endereço.

P. S.: Já ia me esquecendo. Nosso jogo exigirá dedicação integral. Portanto, se estiver disposto, terá de deixar família, trabalho e qualquer pendência pessoal em suspenso. Nada mais justo, não é? Hospedagem gratuita com garantia de boa companhia.

Conto com a sua presença.

Beijos pródigos, Cindy!"

- ... Então lavem as roupas de cama, porque devem estar mais do que cheias de pó. Não recebo hóspedes há décadas. - Cindy gesticulava, animada, diante de um pequeno grupo de empregados que incluía Charles, Nice, uma auxiliar de serviços domésticos e o jardineiro (que eventualmente atuava como motorista). - Tudo precisa estar perfeito para recebê-los. Sei que é redundante, mas não me custa frizar: quero que os quatro sejam tratados como reis, embora não seja exatamente o perfil deles.

Rindo, ela observou a reação dos empregados. Nice e Charles se encaravam como se o que estivesse diante deles fosse uma Cinderela que acabara de ser devolvida pelo disco voador que a abduzira na noite anterior.

No entanto, pelo que conheciam da patroa - e não era pouco -, sabiam que qualquer objeção seria tempo perdido. Aliás, somente ele, o tempo, diria se Cindy iria finalmente cair em si e desistir daquele espetáculo particular.

Gato BorralheiroOnde histórias criam vida. Descubra agora