08 - Em Xeque

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 - Beto?!...

 A sala teria ficado em completo silêncio, não fosse pelo burburinho entre os jogadores.

- Compreendo a sua surpresa. Eu não recebi o convite, não é? - Beto puxou sua mala para dentro. - Será que eu posso entrar?

Cindy estava tão perplexa que nem fingiu um sorriso de boas-vindas, mas o rapaz entrou e cumprimentou cordialmente os quatro competidores.

- Bom... - a dona da casa começou timidamente, ao perceber que devia se posicionar. - Acho que não me resta muito a dizer senão perguntar o motivo dessa surpresa. Como conseguiu meu endereço?

- Uma pergunta de cada vez. - Beto sorriu. - Eu estou aqui por causa de um certo jogo... Esse eu não podia perder! Se for muito atrevimento da minha parte, você tá no seu direito de me mandar embora. Mas eu gostaria muito de competir.

Os olhos de Cindy se arregalaram. Muda, ela encarou Manuel, Fernando, Jim e Júlio. Por fim, gaguejando, improvisou uma resposta.

- Já está tarde, eu preciso ir cedo pra Cristal amanhã. Que tal se a gente fosse dormir e deixássemos pra discutir esse assunto depois? - e aproximou-se de Beto, titubeante. - Beto, você fica aqui essa noite. Como hóspede, hein? Conversaremos melhor amanhã.

Todos concordaram e se encaminharam para seus respectivos quartos, já devidamente preparados pelos empregados da casa. 

Beto seguiu Cindy escadaria acima, fitando-a o tempo todo enquanto era guiado pelos corredores. O diálogo, no entanto, era reduzido ao estritamente necessário. Afinal, ambos sabiam que teriam muito a conversar no dia seguinte.

O café vaporizava diante de si, mas Cindy mal tocou na xícara, tampouco na omelete de ervas finas. Seus pensamentos estavam distantes, alheios, e ela sabia que não era pelo sempre calmante cantar dos passarinhos no jardim.

Ela levantara mais cedo que de costume. Pelo noticiário da manhã, viu que fizera bem: o trânsito estava caótico. Mas o motivo que a fizera lutar contra a preguiça era outro. Cindy não queria cruzar com seus hóspedes tão cedo. Não depois da reviravolta da noite anterior.

E foi assim, pensando em uma maneira de contornar a situação, que a jovem levou um susto.

- Bom dia. - murmurou Beto, emergindo lentamente de trás da porta.

- Bom dia. - respondeu Cindy, depois de refeita. - Sente-se. A Nice prepara alguma coisa pra você.

- Sem pressa. - ele ocupou a extremidade oposta da mesa. - Pelo que tô vendo, aqui é tudo na base do banquete três vezes ao dia.

- Isso é algum tipo de crítica social ou o quê?

- Não, imagina. - ele sorriu, fazendo-a relembrar o tempo em que aquele simples gesto era capaz de tirá-la dos eixos. - Eu sei que a sua empresa tá engajada em diversos projetos sociais. Foi apenas um comentário. Não me lembrava de você ser tão bem de vida assim.

- É que isso nunca fez diferença. - ela sorriu de volta, tentando parecer à vontade. - Nós tínhamos outros interesses, tantas coisas em comum, que o dinheiro nem nos passava pela cabeça.

- Isso é verdade.

Um silêncio constrangedor dividiu a conversa assim que Nice surgiu da cozinha para servir Beto. Depois de aceitar uma oferta tentadora de panquecas caseiras, o rapaz permaneceu em silêncio até que a doméstica se retirasse.

- Que paraquedas te trouxe aqui? - Cindy finalmente disparou.

Um canto dos lábios dele se ergueu - Cindy não sabia se podia considerá-lo um sorriso.

- Eu fiquei sabendo que haveria uma reunião de ex-namorados da senhorita Ramos de Moraes, e achei que seria um absurdo ficar de fora. Logo eu, o primeiro deles. - ele captou o olhar inquisidor de Cinderela. - Foi a Ruth.

Pela expressão que tomou conta do rosto de Cindy, Beto viu-se obrigado a evitar um derramamento de sangue.

- A gente ainda mantém contato. Hoje em dia, com as redes socias, você pode até tentar fugir, mas não consegue se esconder.

- É por isso mesmo que eu evito este tipo de exposição! - a voz dela estava levemente alterada. - Eu pedi pra Ruth guardar segredo. Mas ela que aguarde o acerto de contas!

- Vai dizer que não está feliz em me ver?

Cindy foi pega de surpresa. Gaguejou, mas deu-lhe uma resposta categórica.

- Nossa high-school-love-story foi linda, mas acabou. Você sabe que tem um lugar especial no meu coração, e não precisa participar desse jogo pra ter a prova disso.  Mas eu queria mesmo saber por onde andava. O que fazia, com quem estava, se tinha mudado muito desde a última vez...  Apesar dos quilinhos a mais, sua cara de menino continua praticamente a mesma.

Eles riram juntos como se, de repente, partilhassem da mesma intimidade de antes.

- E os seus sonhos? - ela continuou. - Ainda joga futebol?

- Como professor de Educação Física, é meio impossível fugir disso. - ele riu da própria frustração, a qual ainda se esforçava para superar. - Mas na minha idade, com esse físico, não posso nem mais sonhar em ser jogador profissional.

Cindy mal esperou que as portas do elevador se abrissem e caminhou apressada em direção à sua sala, sem distribuir os sorrisos habituais, parando diante de Ruth, cujo ar de desentendida não lhe convenceu.

- Quero você na minha sala. Agora.

Duas cenas atravessaram a mente de Ruth: em uma delas, Cindy checava cuidadosamente as fitas de segurança do prédio, desmentindo a versão da secretária sobre a invasão ao seu gabinete; em outra, Cardoso a denunciava com os olhos injetados e riqueza de detalhes.

Apreensiva, mas sem deixar transparecer, a secretária seguiu Cindy, fechando a porta atrás de si.

- Algum problema? - ela era cínica o suficiente para fazer tal pergunta. - Espero poder ser útil.

- E eu esperava que você fosse capaz de guardar segredos. - Cindy tomou seu lugar, encarando-a nos olhos. - Francamente, Ruth, minha confiança em você fica cada vez menor!

- É por causa do Beto, não é? - Ruth também se sentou. - Me desculpe, Cindy, mas é que eu achei que ele tinha o direito de saber. A história de vocês foi tão intensa, e eu não calculei as consequências dos meus atos. Agi por impulso.

- Isso não justifica nada. - Cindy permanecia impassível. - Eu pedi discrição, e você foi comentar essa história justo com ele! Sabe o que o Beto fez? Bateu à minha porta de malas prontas, e eu não pude simplesmente mandá-lo embora. - ela apoiou a cabeça nas mãos. - É muita coisa pra minha cabeça!

Ruth conseguiu disfarçar um sorriso de satisfação.

- E quanto a mim? - a secretária hesitou. - Você não pode me advertir por isso, então... eu vou ser despedida?

Gato BorralheiroOnde histórias criam vida. Descubra agora