02 - Lobo Em Pele de Cordeiro

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A noite estava fresca, não fria como as anteriores. Um coro de grilos enchia o ar. No jardim reinava uma paz espiritual.

- Mamãe... - Cindy ajoelhou-se diante da lápide, depositando ali um buquê de lírios brancos. - Papai... - virou-se e deixou um segundo buquê, de gerânios amarelos, no túmulo ao lado.

Ela respirou profundamente, e uma onda de nostalgia lhe invadiu. A morte de seus pais completava cinco anos. Hermano, um conhecido estilista, carinhoso, simples, especial; e Stela, sua esposa, costureira recatada e de coração puro, um exemplo de mulher... A Cristal Calçados, assim como Cinderela, nascera deles. Todo o rico patrimônio que a filha administrava fora construído do zero, numa bela história de trabalho e superação. Um sonho perfeito que teve fim de forma abrupta numa noite como aquela.

- Nem mesmo a morte os separou. - Charles conclui, abraçado à esposa. - Vamos perdoar o passado, Cindy. Ele já plantou a semente. A vida segue, e conhece muito bem os seus desígnios.

- Eu já digeri o que tinha que ser digerido. - ela levantou com um sorriso. - Recordar também é viver, Charles. E eu não esqueço nunca. Disso vocês podem ter certeza.

- Então vamos comemorar à memória de Stela Ramos e Hermano de Moraes! - Nice se manifestou. - Que as almas deles velem por nós, nas alegrias e nas tribulações.

Cindy virou-se para eles. Parecia renovada, de corpo e alma.

- Tem champagne na adega. - ela sorriu. - Mas, antes, que tal uma oração?

A porta do elevador se abriu e Ruth se pôs a estudar o terreno. Alguns funcionários notívagos ainda vagavam pelos corredores da empresa. Aquilo dificultaria um pouco as coisas, mas ela haveria de dar um jeito.

Enquanto se autorrepreendia mentalmente pela falta de planejamento,  Ruth viu a porta do elevador passar diante de seus olhos.

Um gritinho. Pé na porta. O andar inteiro voltou-se para ela com aquela típica cara de choque e estranheza -> "O.o". Nada que a fizesse dar meia-volta e ir embora enquanto lhe restasse o mínimo de dignidade. Sua missão era mais importante, e, portanto, um pigarro, um nariz empinado e um olhar de intimidação poderiam jogar panos quentes no incidente.

Diante da porta do gabinete de Cinderela, a secretária deu uma olhada pouco discreta por cima dos ombros. Fim do expediente. Os últimos funcionários iam embora, e os seguranças, que não tinham por que desconfiar dela, deveriam estar tomando um cafezinho.

Ela respirou fundo. "É hoje que aquela vaca vai tomar o caminho do brejo", pensou, as sobrancelhas erguidas. "De Cinderela a Gata Borralheira... Triste, não?"

E então, levou a mão à maçaneta. 

- Merda! - ela tentava inutilmente encaixar a cópia da chave na fechadura. - Merda mesmo! Quem aquela patricinha pensa que é pra trocar a fechadura sem nem me avisar?! Agora deu pra ter medo que alguém roube aqueles sapatos que ela esconde debaixo da escrivaninha? Até parece!...

Um silêncio constrangedor se seguiu assim que Ruth deu de cara com dois armários humanos de terno e gravata. Certamente tinham deixado o cafezinho para lá. Estranho.

Tenso.

- Eu... esqueci um coisinha ali dentro. - Ruth quis enterrar a cara em sua bolsa de couro sintético, mas não podia desistir depois de ter chegado tão longe. - Sério. Não tô louca, não. 

Os seguranças se entreolharam.

- A única que tem a chave é a dona Cinderela. - disse um deles, que de bobo não tinha nada. - É melhor ir agora.

O outro a encarou com cara de poucos amigos.

- Boa noite.

Ruth deu meia volta e se dirigiu ao elevador a passos de tartaruga. No percurso, olhou por cima dos ombros duas ou três vezes. No entanto, bastou-lhe que os seguranças dobrassem o corredor para recobrar a postura.

- Quero ver quem vai me impedir! - ela sussurrou, aproximando-se da sala de Cindy na ponta dos pés. - Toc, toc!

Primeiro, ela tentou forçar a trava, sem sucesso. Depois, sem esperanças, começou a esmurrar a porta num ataque de histeria.

Um estrondo lhe gelou a espinha. Antes mesmo que pudesse chamar a atenção dos seguranças, ela conseguiu.  A trava cedera.

- Porta vagabunda, hein?

 Cindy cambaleou ao fechar a porta do quarto atrás de si. Abusara um pouco do champagne, apesar de não querer admitir.

Desabotoou o sobretudo de cima abaixo, e despiu peça por peça com certo desengonço. Só parou ao virar-se para o espelho às suas costas e encontrar o próprio reflexo em roupas íntimas. 

- Oi, gata. - ela falou com afetação. - Você vem sempre aqui?

Cindy percorreu toda a extensão de seu abdômen chapado com as mãos. Ela era, inegavelmente, linda. Um partidão. Examinou a si própria, os ombros suaves, os braços esguios, os seios perfeitos, os quadirs elegantes e os pés delicados. Se não tivesse herdado prematuramente a empresa da família, poderia ter feito carreira como top model.

- Espelho, espelho meu... - ela se interrompeu com um sorriso. - Existe alguém mais feliz do que eu?

Olhando para o lado, viu a porta do closet entreaberta. Cambaleou até ela.

Era o seu paraíso particular. Centenas de pares de sapato, de todas as cores, formatos e estilos existentes, enchiam as prateleiras. Em pedestais de acrílico, seus tesouros cintilavam à luz de um lustre cravejado de diamantes. O aroma adocicado envolvia o ambiente em uma atmosfera onírica.

Cindy sentou-se no sofá de couro vermelho e afivelou um par de ankle boots de veludo nos tornozelos. Levantou-se de súbito e desfilou até o espelho interno, fitando o próprio rosto.

- Não vai fazer a louca, tá? Aqui quem manda sou eu! - ela encarou o reflexo com ar de superioridade. - Que se danem a independência, o papinho feminista e o seu ideal de vida feliz. Tá decidido. Chegou a hora de casar!

Gato BorralheiroOnde histórias criam vida. Descubra agora