18 - Teto de Vidro

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Fernando ajudou Charles com as próprias malas enquanto desciam para a sala de estar. Ele sorriu para Cindy, Manuel, Jim, Beto, Nice e Elton, que os aguardavam diante da escada, em fila indiana.

- Aposto que não sentirão minha falta. - disse ele, recebendo uma mala de rodinhas do mordomo. - Afinal, todos sabemos que já fiz hora extra nesta casa.

- É uma pena que você tenha que ir embora. - Cindy aproximou-se, esfregando os braços. - Mas compreendo os seus motivos. De qualquer forma, obrigada por ter participado. Foi ótimo poder matar as saudades.

Fernando não soube como interpretar a piscada discreta de Cinderela. Talvez ela finalmente tivesse cedido aos seus conselhos e aquilo fosse uma espécie de agradecimento. Ou um sinal de que entre eles sempre existira uma amizade muito forte, o que foi consolidado durante o confinamento. Qual fosse o significado, ele respirou aliviado ao receber as despedidas dos demais, dar um abraço fraterno em Cinderela e atravessar - mais leve que uma pluma - a porta da frente.

Ruth distraía-se na organização dos primeiros recados do dia quando sentiu o peso de uma respiração acima de sua cabeça. Ela ergueu os olhos e se deparou com Debby debruçada no balcão.

- Bom dia, Ruth. - a designer cumprimentou, deixando transparecer uma pontinha de ansiedade. - Você viu a Cinderela?

- Ela ainda não apareceu por aqui hoje, não. - a secretária devolveu com intenções obscuras. - Quer dizer, não é a minha intenção meter o nariz onde não devo, mas... A senhora já reparou que a Dona Cinderela tem comparecido menos ao trabalho?

- É, os funcionários já começaram a reparar. - Debby encarou o ar, pensativa. - Você não sabe algo sobre isso, por acaso?

- Eu? Imagina! - Ruth sorriu. - Não sei de nada. Apenas desconfio.

Ela nem precisou esperar pela pergunta de Debby. Os olhos azuis da designer já denotavam sua avidez por informações.

- Quando a chefe dá as caras, ela nunca parece de mau humor. - Ruth prosseguiu, como quem não quer nada. - Na verdade, está mais sorridente do que nunca; se é que isso é possível. E cantante, e pensativa... às vezes dá a impressão de estar sonhando acordada. E nós duas sabemos o que isso pode querer dizer.

- Um namorado secreto, sem dúvida. - Debby sacudiu a cabeça. - Mas por que ela esconderia isso de mim? Cadê a mulher moderna, independente e segura de si, que faz questão de dividir suas aventuras sexuais com as amigas? O caso parece grave. Acho que tá na hora de fazer uma visitinha...

- Você pegaria os meninos na escola por mim, meu amor? - Jorge Torquato dizia afetadamente ao telefone. - É, eu sei, acabou de passar na TV. O trânsito está terrível. Nem sei se vou chegar para o almoço. - uma pausa. - Mas não precisam esperar, meu amor. Os meninos devem estar com fome. Quando chegar, eu como qualquer coisa. - uma nova pausa, desta vez mais longa. - Ah, é? Então tudo bem. Sim, parece uma boa ideia...

Zilda pigarreou, interrompendo a conversa romântica.

- Também te amo. - Jorge baixou o tom de voz, constrangido. - Até mais tarde. Beijo...

- Desculpa, seu Jorge. - Zilda estendeu-lhe a mão. Ela estava tão vermelha quanto ele. - Vim devolver as chaves do armário de limpeza.

- Ah, sim. - o diretor levantou-se da cadeira de rodinhas. - Não precisa se desculpar, dona Zilda. Eu é quem lhe devo desculpas. Não se deve ficar jogando conversa fora pelo telefone no local de trabalho, não é mesmo?

- Acho que não foi esse o caso. - ela disse, relaxando os ombros. - O senhor tem uma esposa dedicada e atenciosa. Eu pessoalmente não me incomodo. Além do mais, o telefonema foi por uma causa nobre. Afinal de contas, não queremos que os seus flhos fiquem presos na escola por conta de um engarrafamento.

- Não, mesmo. - Jorge riu. - A vida de casado é difícil, mas sempre vale a pena. Posso dizer que tirei a sorte grande.

- Aposto que sim. - Zilda sorriu sem graça. - Agora, se me der licença...

- E a senhora, dona Zilda? - ele perguntou, ignorando o constrangimento da zeladora. - Não pretende se casar?

- Ah... - ela fitou o ar, pensativa. - Já estou velha demais pra pensar nisso.

- Não repita uma coisa dessas, dona Zilda. - Jorge deu a  volta em sua mesa e pegou a chave. - Nunca é tarde para recomeçar. Sei que isso soou clichê, mas é a pura verdade.

Ela riu involuntariamente.

- Eu nunca me envolvi com homem nenhum depois de ter minha filha. E, se depender de mim, as coisas vão continuar assim. - Zilda deu meia volta, dirigindo-se para a porta. - Tenho que ir, seu Jorge.

- O pai da Ruth... - Jorge pensou alto, fazendo com que a zeladora parasse imediatamente. - Engraçado, eu não sei quase nada sobre ele. Lógico, não é da minha conta. Mas vez por outra me pergunto... que fim levou ele?

Zilda virou a cabeça tão repentinamente que provocou um leve susto no diretor. Seus olhos castanhos o fuzilaram.

- Me desculpe... - ele gaguejou.

- Seu Jorge, o senhor me desculpe, mas esse papo não me agrada em nada! - ela elevou o tom de voz. - Que bicho te mordeu para querer ressuscitar esse passado negro de uma hora pra outra? Quanto ao pai da Ruth, eu espero jamais ter que voltar a lembrar do infeliz! Ficou claro?

Debby sorriu para o mordomo após um tempo de espera que pareceu uma pequena eternidade, embora não tivesse passado de dois minutos.

- Bom dia, Charles. - ela forçou um sorriso. - A Cinderela está?

A designer empinou o nariz assim que Charles fez um gesto afirmativo com a cabeça, seguido de uma mesura. Seguiu para o interior da mansão determinada a dizer poucas e boas - afinal, tentara fazer contato com Cindy a manhã toda, mas seu celular estava obviamente desligado.

Ao pôr os pés na sala de estar, no entanto, Debby se deparou com uma cena que a congelou da cabeça aos pés: Cindy, rindo feito uma criança, bebia sua limonada geladinha, cercada de três belos rapazes.

O queixo de Debby caiu, ao mesmo tempo que suas sobrancelhas se juntaram numa mistura de perplexidade, indignação e súbita necessidade de uma explicação plausível.

Gato BorralheiroOnde histórias criam vida. Descubra agora