Cindy encarou a parede da cozinha enquanto tomava um copo de água com açúcar. O dia estava longe de terminar, mas tudo o que ela queria era desmaiar na cama e acordar num resort cinco estrelas, cercada de gente desconhecida, sem pressões. Uma centelha de arrependimento - que ela não sabia exatamente de quê - começava a se manifestar.
- Com licença. - Beto hesitou por alguns segundos na porta da cozinha. - Eu... não sei como me sentir agora, mas o pessoal tá indignado ali fora. Principalmente o Jim. Não vai querer cruzar o caminho dele.
- Você é quem deveria ter medo de cruzar o meu! - ela voltou-se bruscamente, os olhos injetados. - O que foi que deu em você?! As regras do jogo são bem claras!
- Me desculpe, Cindy, mas eu tô cansado disso.
Eles se encararam silenciosamente.
- Já passou da hora de você desistir dessa loucura. - ele se aproximou. - Vidas não são prêmios, e o casamento não é um jogo de azar.
- É uma pena, pois eu achei que você tivesse aceitado meus termos. - ela cruzou os braços, evitando o contato físico. - Beto, não se iluda... Se não está disposto, pode ir embora. O casamento é e sempre será um contrato de boa vontade mútua.
- Que só dá certo se existir algo além de boa vontade. - os olhos castanhos dele pareciam querer tragá-la. - Será que você não sente nada de especial por algum de nós? Onde estão os seus sentimentos?
- Não seja piegas, Beto. - Cindy deu meia volta, sentindo os olhos umedecerem ligeiramente. - Esse jogo não tem nada a ver com amor. Amor se aprende, se adquire com a convivência. A palavra-chave aqui é compatibilidade.
- Eu não acredito que você possa estar falando sério! - Beto alterou a voz. - Quando foi que você deixou de ser uma mulher de verdade, um ser humano? O que faz com que você veja o próprio casamento como mais um dos seus negócios?!
- Chega, Beto! - uma lágrima discreta escorreu pelo rosto de Cinderela. - Não estou aqui pra ser questionada!
O rapaz dirigiu-lhe um sorriso piedoso e, despido de reservas, acariciou-lhe a bochecha macia.
- E eu, Cindy? - ele sussurrou, suavemente, depois de algum tempo. - Onde fico nessa história? Eu deixei o meu emprego, minha família e amigos para uma última tentativa de fazer com que a gente tivesse um final diferente... e tudo o que mereço em troca é um "se não está satisfeito, vá embora"?
O olhar dela pareceu-lhe um relutante pedido de desculpas. Mas desculpas não eram suficentes. Beto reconheceu, de repente, que todos sob aquele teto estavam terrivelmente errados. Inclusive ele próprio.
- Eu sei, por mais estranho e bobo que pareça, que entre nós não tem apenas uma lembrança de adolescência. - ele suspirou. - Se fosse assim, eu não teria vindo atrás de você depois de tanto tempo. E você, provavelmente, já teria me posto pra fora.
- Se você acha que com isso vai se livrar da penalização severa por ter descumprido as regras... - Cindy hesitou. - vai tirando o cavalinho da chuva!
- Você não pode parar de falar nesse jogo besta nem por um segundo?
- O que vai fazer se minha resposta for "não"?
Quando caiu em si, Cinderela já sentia os lábios de Beto pressionando os seus, desbravando tudo aquilo que ela tentara inutilmente esconder. O mundo, o jogo, tudo desapareceu, uma vez que seu corpo e alma estavam repentinamente entregues à súbita deriva.
Cleide pigarreou ao se aproximar da piscina com uma bandeja de limonadas.
- Um refresco para os "senhores". - ela recuou, mantendo a expressão de desdém quando Manuel, Fernando e Jim saíram da água em sua direção. - Não precisam avançar, tem pra todo mundo.
- Alguma novidade, Cleide? - Jim era o único que parecia mais ávido por informações do que pelo suco. - Sim, porque não é justo que aquele balofinho frustrado tenha algum tipo de privilégio neste jogo. Isso não tava no regulamento!
Retorcendo os lábios, ela pôs a mão na cintura e olhou-os de cima a baixo.
- Vocês são todos porcos indecentes! - respondeu, para a surpresa geral. - A coisa tá assim tão feia a ponto de precisarem disputar uma mulher a tapas? Se fossem filhos meus, aprenderiam do pior jeito a criar vergonha na cara!
Os rapazes a miraram com perplexidade. Fernando abafou um risinho.
- Mas de uma coisa eu sei... - ela prosseguiu, atraindo os ouvidos aguçados. - Ainda vem bomba por aí. Pelo que entendi, a patroa está planejando uma prova surpresa pra depois do jantar. Se quiserem se dar bem, é bom ficar atentos. Agora, vamos, continuem chafurdando. E não se esqueçam: aconteça o que acontecer, eu nunca estive aqui, nem disse coisa nenhuma.
Dizendo isto, Cleide deu meia volta e desapareceu.
- Te contei sobre o Beto? - Ruth secava os cabelos após um banho quente e demorado. - Consegui fazer contato com ele, e falamos sobre o caso Márcio.
- Como assim? - Zilda baixou o volume da TV. - Ele não está em "cárcere privado" na casa da sua chefe?
Ruth soltou um riso agudo.
- Mamãe, você não existe. - ela sentou-se no sofá. - Eu telefonei e o mordomo me atendeu. Deixei um recado para o Beto, pedindo que me encontrasse no refeitório da empresa. Cheguei a pensar que ele não fosse.
- Mas a troco de quê?
- Eu queria fazer um favor ao meu velho amigo, recebendo o dinheiro e repassando para o substituto. - a secretária sorriu maquiavelicamente. - O Beto tava todo nervoso, nem tanto pelo surto do Márcio, mas por medo de ser pego pela Cinderela. Imagina só ele dizendo um segundo e definitivo adeus à patricinha... eu não iria achar ruim.
- Filha, me diz uma coisa... - Zilda tentava juntar as peças. - Pra quê se meter nessa história? O Beto podia muito bem resolver os próprios problemas sozinho. A não ser que tenha caroço nesse angu... Ruth, não me diga que você tá de olho nesse rapaz!
Ruth gaguejou, mas não respondeu. Em vez disso, fez um sinal com a mão indicando que a mãe estava dizendo sandices e se retirou, sem olhar para trás.
Charles terminou de servir as taças de vinho diante de olhares perdidos, apreensivos ou mesmo enfastiados.
- Cleide está demorando mais que de costume. - Cinderela traduziu em palavras a insatisfação geral. - Sabe o que está acontecendo, Charles?
E antes que o mordomo pudesse encontrar uma resposta, eis que Cleide irrompeu na sala de estar, carregando uma bandeja fumegante. Atrás de si vinha Nice, visivelmente apreensiva.
- Está atrasada. - Cindy disse suavemente. - Você...
- Eu sei. - a copeira interrompeu com um sorriso debochado. - Mas acho que seus hóspedes "ilustres" não vão morrer de fome se esperar uns minutinhos a mais, não é?
Todos se entreolharam, constrangidos. Exceto Cinderela, que mantinha seu olhar indignado sobre Cleide.
Despreocupada, a doméstica serviu os pratos, e a reação a eles foi unânime: repulsa e incompreensão. No lugar de um tradicional ensopado francês, o que havia eram cascas de laranja, restos de ovos, frutas podres e tudo o mais que deveria estar no cesto de lixo orgânico, e não à mesa.
- Ficou maluca?! - Cindy levantou, sobressaltada. - O que você pensa que está fazendo, Cleide?!
- Minhas desculpas se ofendi alguém, mas sempre achei que porcos fossem acostumados a lavagem. - Cleide sorriu ironicamente, tirando partes do próprio uniforme diante de todos. - Não suporto mais essa Sodoma a que vocês chamam de casa. Bons tempos aqueles em que a senhora, dona Cinderela, tinha algum juízo e decência nessa sua cabeça cheia de tônico fortificante! Pode ficar com todos os seus homens, nesse palácio de imoralidade. Eu sou uma mulher honrada, e é de cabeça erguida que me demito!
Com estas palavras, Cleide atravessou a porta da sala de jantar, deixando um rastro de tensão e perplexidade. Nem os outros empregados, nem os rapazes - e muito menos Cinderela - tornariam a vê-la.
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Gato Borralheiro
General FictionUma metrópole qualquer, 2013. Cinderela Ramos de Moraes - ou simplesmente Cindy - é uma jovem rica, linda e independente. Presidente da Cristal Calçados, a empresa da família, tem paixão assumida por sapatos e popularidade entre os funcionários. Pa...