Os passos firmes e ritmados ecoavam pelos corredores da delegacia. Em cantos opostos da cela, Jim e Júlio se entreolharam. Então, o "arauto da morte" apreceu do outro lado das grades, lançando seu olhar de rapina sobre a dezena e meia de detentos.
- Jim Williams. - chamou a voz cavernosa do carcereiro enquanto este abria a porta cuidadosamente. Bem atrás de si, um advogado de meia-idade que esboçava uma expressão quase neutra, embora desse pequenos indícios de decepção.
A expressão de Jim mudou de apreensão para alívio. Depois de uma discreta piscada para o advogado, ele ajeitou a camisa e encaminhou-se para saída, detendo-se para encarar Júlio.
- Foi bom enquanto durou, amigo. - ele sorriu com escárnio. - Interprete "bom" como quiser. Quero dizer, ei, foi uma aventura. É uma boa história para contar aos seus filhos bastardos algum dia. Só espero que o marido milionário da sua amante não consiga estragar as coisas. De qualquer forma, a gente se vê lá fora. Embora eu ache que isso não esteja no topo da sua lista de vontades, no momento.
Com um aceno displicente, o modelo deixou a cela sem olhar para trás. Cercado pelos olhares desdenhosos dos detentos, Júlio estava a ponto de entrar em erupção.
Cindy saiu desfilando do elevador. Nariz em pé, sorriso de orelha a orelha, leve como uma pluma. Acenava para os funcionários da Cristal Calçados com uma amabilidade ainda mais intensa que a de costume. Todos comentavam, cochichavam, anunciavam a chegada da "noiva da vez".
- Cindy? - Debby parou diante do balcão de Ruth. - Quando a senhorita pretendia me contar a novidade, hein?
- A minha vida anda tão confusa, amiga. - ela respondeu, estendendo-lhe um envelope aveludado. - Eu devo ter esquecido. Mas não esqueci do seu convite, viu? O Beto e eu já marcamos a data! - e, então, entregou outro envelope para Ruth, que o recebeu com indiferença.
- Eu fico muito feliz por você. - Debby abraçou a amiga com um carinho maternal. - Todos nós temos a nossa cara-metade, eu acredito nisso! Que bom que você encontrou a sua, hein, Cindy? Já não era sem tempo. Você vai ser a noiva mais linda do ano, pode apostar!
- Eu vou é ser a noiva mais feliz, do ano e de todos os tempos! - Cindy deu um passo para trás, os olhos lacrimejantes. - Obrigada, viu? Eu não vejo a hora do grande dia chegar. Já tô prevendo uma maquiagem belíssima destruída pelo meu rio de lágrimas!
- Eu prometo que você não vai ser a única, viu?
Rindo, as duas abraçaram-se novamente. De seu lugar, muda, Ruth assistia a tudo com indisfarçado desdém.
Titubeante, Lúcia esperou, encostada ao batente da porta. Suas mãos trêmulas apertavam a caixinha branca - o receptáculo não mais secreto dos poemas amorosos de Lucas. Quando o patrão enfim notou sua presença, afastou-se do computador com um sorriso cordial.
- A Gigi está certa. - disse ele, lançando um breve olhar de desgosto para o monitor. - Talvez a minha vida só comece de fato quando eu largar este emprego.
- Seu Lucas, eu... não quis atrapalhar. - Lúcia gaguejou, antes de entrar no escritório. - Com licença.
- O que temos aí? - ele tomou-lhe a caixinha das mãos, examinando todas as suas faces. - Eu pensei ter escondido melhor desta vez.
- Eu sou sua doméstica, Seu Lucas. Uma hora ou outra acabaria encontrando. - um meio-sorriso tomou o rosto sem jeito de Lúcia. - Desculpe pela invasão. Eu sei que não é da minha conta, mas... tem uma coisa que me intriga.
- Muitas coisas me intrigam, Lúcia. Diria que são maioria, comparadas àquelas que não me despertam o menor interesse. - Lucas pôs-se em pé com um suspiro. - Vamos acabar logo com isso. O que foi, desta vez?
Depois de aproximadamente dez segundos de reflexão, Lúcia removeu a tampa da caixa e do interior tirou um pequeno papel de carta que se destacava dos demais. Um papel negro como carvão, adornado com linhas e arabescos prateados. A caligrafia contida nele era elaborada e claramente meticulosa - autoria de Lucas, mas com um notável capricho especial. Era mais um poema da coleção. No entanto, não era como os outros. Um esboço, um ensaio... versos inacabados, rimas rabiscadas. Um estado de abandono, algo que não fazia o menor sentido, considerada a beleza visual em que o autor parecera fazer questão de inserir a obra.
- Acho que isto deveria ser um poema. - murmurou ela, entregando-lhe o papel de carta. - Mas parece que falta muita coisa nele. Parece inacabado. E é estranho, porque isso não aconteceu com nenhum outro. Imaginei que deveria haver um motivo.
- Você tem razão, Lúcia. Não devia ter remexido o passado novamente. - ele dobrou o poema, juntando-o aos outros, e então recolocou a tampa na caixa. - Às vezes é preciso deixar que as coisas morram. Faz parte do ciclo da vida, o velho dá lugar ao novo. Me diga, por que todo esse seu interesse nos meus poemas?
- Porque, além de muito bonitos, eles me fazem enxergar como o senhor realmente é. - Lúcia o encarou diretamente nos olhos. - E, por mais que o senhor diga essas coisas, eu acredito que tem muito nessa vida que não morre com o tempo. A esperança, o amor... e até mesmo esse poema que o senhor faz questão de sufocar. Se não quer que ele tome forma, amadureça e dê frutos, é porque sabe de sua importância.
Sério e impassível, Lucas observou a doméstica se encolher, fazer um aceno sutil com a cabeça e dar meia volta. Assim que se percebeu a sós, ele permitiu que seus olhos encontrassem a pequena caixa branca que repousava entre suas mãos. Meio hesitante, tirou a tampa. Então, como quem aninha um bebê recém-nascido, e sem desviar o ollhar, desdobrou carinhosamente o papel de carta negro.
Faltava pouco para o horário de almoço, e Ruth sentia o estômago contorcer-se. A internet batia seu recorde anual de lentidão, o telefone não tocava há mais de uma hora e ninguém passava por ali comendo um pacote clandestino de salgadinhos para poder oferecer-lhe um bocado. Mas nada era capaz de irritá-la mais do que o convite de casamento de Cindy, que jazia entre pilhas e pilhas de papel.
Desinteressada, Ruth esticou seus longos dedos até o envelope de veludo, trazendo-o para junto de si. Abriu-o e puxou o pomposo convite, relendo-o pela décima vez. Então, como se finalmente lhe tivesse caído a ficha de toda a situação, Ruth foi surpreendida com um tremor irracional de raiva e despeito. Fora de si, a secretária passou a murmurar uma série de xingamentos por entre dentes semicerrados - um vocabulário que variava de "piranha" a "filha de uma puta paga" - enquanto rasgava o convite furiosamente.
Tudo havia sido reduzido a pedacinhos ininteligíveis de papel, quando o mundo de repente parou para Ruth. Não muito longe, diante da porta do gabinete de Cinderela, a própria observava tudo estarrecida.
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Gato Borralheiro
General FictionUma metrópole qualquer, 2013. Cinderela Ramos de Moraes - ou simplesmente Cindy - é uma jovem rica, linda e independente. Presidente da Cristal Calçados, a empresa da família, tem paixão assumida por sapatos e popularidade entre os funcionários. Pa...