27 - Cara a Cara

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Vê-la naquele estado de insanidade foi uma sensação indescritível para Cindy. Um de seus maiores choques desde a morte dos pais. De certa forma, algo estava definitivamente "morrendo" naquele instante.

 - Na minha sala. - ela disse, depois de um silencioso instante. - Agora.

Então, Cindy deu meia volta e caminhou até sua escrivaninha, a cabeça a mil, tentando descobrir a coisa mais apropriada a dizer em um momento, no mínimo, azedo como aquele. Inspirou e girou nos calcanhares para encarar a cara lavada de Ruth, que realmente parecia prestes a proferir o famoso clichê de "não-é-nada-disso-que-você-está-pensando".

- É claro que existe uma explicação para tudo isso. - a empresária lançou-se pesadamente sobre a cadeira. -  E, embora você não tenha o dever de me explicar nada, espero que, devido à nossa relação, você tenha a decência de fazer isso.

- Admiro a sua disposição em saber a verdade. - empinando o nariz, Ruth tomou lugar à sua frente. - Porque ela costuma machucar as pessoas.

Elas se encararam por um momento de tensão. Cindy, enfim, abriu a boca para responder, mas se deteve quando Ruth prosseguiu.

- Não sei se posso dizer que te odeio, Cindy. - disparou ela. - Mas uma certeza eu tenho: não tenho muitos motivos pra gostar de você. Eu não esqueci, não superei. Deve levar mais de um século pra curar uma mágoa. Até quando você vai achar divertido esse negócio de esfregar essa sua perfeição de princesinha na minha cara? Até quando vai se achar melhor que todo mundo por ter dinheiro e homens capazes de, literalmente, se arrastar atrás de você? O mundo dá voltas, querida. Uma hora ou outra, a coroa cai.

Indignada, Cindy gaguejou estupefata, sem saber ao certo o que dizer.

- E isso não é tudo. A gota d'água foi o Beto! - a voz de Ruth elevou-se ligeiramente. - Talvez eu precise refrescar sua memória. Desde quando a gente estudava juntas, você sabia dos meus sentimentos por ele. Só que isso, claro, não a impediu de ter um casinho bonitinho com ele.

- Em primeiro lugar, não foi um "casinho". - Cindy exasperou-se. - Foi muito mais do que isso, aliás, não "foi", é! O sentimento que temos um pelo outro é sincero, estamos dispostos a construir uma vida juntos, e é por isso que vamos nos casar. E em segundo lugar... - ela se deteve por um momento ao perceber que Ruth reprimia um rompante de lágrimas. - Francamente, Ruth, eu jamais esperaria isso de você. A sua inveja escorre das suas palavras. Se estivesse no seu lugar, eu me daria mais valor, sabe? Eu não posso fazer nada se a sua frustração te impede de ver um palmo à sua frente!

- Cale a boca! - rompeu a secretária. - Me acusar de inveja parece uma boa tática para se isentar de qualquer culpa nessa história. Mas não vou cair no seu truque. E se o Beto te ama tanto quanto você quer me fazer acreditar, por que diabos ele não te procurou em todos esses anos?! Porque eu, sim, mantive contato com ele depois do colégio. Era comigo que ele trocava mensagens por todos esses anos, enquanto você estava preocupada em descobrir qual dos seus namoradinhos riquinhos daria o melhor marido. O que dói mais é que, aparentemente, você conseguiu mais uma vez! Bastou que ele batesse os olhos em você para cair na sua teia novamente. Você devia tomar vergonha, Cinderela Ramos de Moraes! Saiba que o meu amor por ele nunca mudou, desde aquele tempo. O meu sentimento, sim, é que é verdadeiro. E o que puder fazer pra acabar com essa relação de vocês, eu vou fazer!

No instante seguinte, Cinderela ergueu-se sobre a escrivaninha, sem desviar os olhos do rosto raivoso de Ruth. Então, solenemente, declarou:

- Eu não tenho palavras para expressar minha decepção. Certamente será um desgosto imenso ter que voltar a olhar para a sua cara todos os dias. Não quero que apareça no meu casamento, e falo sério. Para mim, seu nome passou a ser persona non grata. E, antes de atravessar aquela porta e voltar ao seu trabalho, fique com este pequeno conselho. Você precisa, desesperadamente, rever seus conceitos sobre o amor.

Gato BorralheiroOnde histórias criam vida. Descubra agora