CAPÍTULO 13 - Mentiras

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O ritmo até a casa de Liz não era mais o mesmo. Agora estávamos cansados e , de certa forma, abalados. Ethan, assim como eu, também se culpava, tanto que nem abriu a boca no caminho, se achava culpado por não ter visto Hajick antes, e eu por não ter sentido o cheiro podre dele. Mas pelo menos ele não faria mais nada com nenhuma mulher. As leis dos homens me dariam o direito e obrigação de prendê-lo, mas o mundo em que eu estava era outro, não havia cadeia, redenção, e nem bandidos. Todos eram assassinos, agora eu também era um. Perdi o controle e enfiei um pedaço de metal cinco vezes na barriga de um homem. Isso não me torna melhor que eles. Mas eu apelava para a velha desculpa: eles são os caras maus e eu sou o cara do bem.
Enfim chegamos. Aquele velho bairro me trouxe lembranças: eu e Liz correndo pelas gramas do vizinho e ele atirando pedras em nós, mais um dia normal para duas crianças londrinas. Também me veio a recordação de quando salvamos o gatinho da Sra. Miller da árvore, talvez nesse tempo eu tenha sido mais herói do que sou hoje. Bom, era melhor esquecer tudo isso.
- E se os pais dela estiverem aí?
- A gente vai embora. - Respondi sem entender direito. Estava certamente com a cabeça em outro lugar.
- Não foi isso que quis dizer. É que se eles te verem vai dá problema. Eram amigos, os pais dela devem te conhecer. Esqueceu que morreu?
- É que é difícil lembrar desse detalhe. Mas ok, o que fazemos?
- Você se esconde atrás de qualquer coisa que seja maior do que seu corpo e eu bato na porta. Se os pais dela sairem, eu digo que sou um amigo dela do colégio e que vim conversar sobre um trabalho de química.
- Eu odeio química.
- Assim como todos nós, Kevin. Agora vai!
- Não acha que tem nada errado no seu plano?
- Que seria? - Ele enfim baixou seu capuz.
- É que geralmente as pessoas não falam sobre trabalhos de química com um arco e flecha nas costas.
- O que? Ah, merda. Eu tinha esquecido. - Coçou a cabeça confuso. - Toma. - Me entregou seu arco e aljava.
Sabe quando sua mãe vai lhe entregar dinheiro e ela quase não solta ele? Foi como Ethan me entregou sua arma.
- Seu arco deveria sumir como Longinus.
- Vai logo!
Me escondi atrás de uma árvore. Tão cansado fisicamente quanto psicologicamente. Minhas mãos ardiam, minha testa suava, minhas pernas já bambas rezavam por uma boa poltrona, ou melhor, uma cama. Mas aí me vinha a lembrança de que gastar tempo com isso era prejudicial à missão. Agora restara 3 dias para a próxima recarga da lámina da ressurreição, e além do mais, quanto mais eu demorava mais tempo minhas amigas sofriam nas mãos dos Azuis. Eu havia prometido a Hank que iria trazê-las de volta, então eu não iria perder tempo com camas. Mas se até Ethan queria tomar banho na casa de Liz, eu não iria discordar. No máximo trinta minutos lá e eu daria adeus a ela de vez.
Ouço batidas na porta. Sinto o cheiro de alguém se aproximar e graças a Deus era o de Chloe.
- Onde você tava? - Ela o beijou antes que eu saísse de trás da árvore.
- Se eu soubesse que seria assim, iria demorar mais a cada vez que saísse. - Ethan sorriu.
Sinceramente, eu saía ou não de trás da árvore? Chloe nunca era carinhosa com ninguém. Admito que me surpreendi ao escutar aquele som de beijo após as batidas na porta.
- Idiota. - Chloe pareceu recompor seu modo bruto. - Cadê o "Grande Lobo da Selva" ?
Saí do meu esconderíjo de madeira.
- Estou aqui. E a propósito, belo beijo. Os pais dela não estão mesmo aí?
Chloe pareceu que iria me bater devido ao primeiro comentário mas ela mesmo se interrompeu.
- Não. Esqueceu que eles só chegam mais tarde?
- Perguntei por garantia. - Me defendi.
- Tanto faz. Entrem os dois antes que sejam vistos.
A casa de Liz estava da mesma maneira desde a última vez em que a visitei. Até seu cartucho de Nintendinho do Mortal Kombat III estava jogado no sofá. Me pergunto como seus pais não haviam visto em uma semana.
- Kevin! - Chloe deu um tapa em minha cabeça.
- Ai! - Esfreguei com a mão meu galo recém nascido. - O que foi?
- Ela não acreditou muito no que a gente disse. Afirmou que só acreditaria se as palavras saíssem de sua boca. Acha que devemos apenas negar o que já contamos ou irmos fundo na história?
Ela merecia saber a verdade. Além do mais, eu sabia que ela nunca contaria a ninguém. Naquela tarde, eu iria embora e Liz tinha que saber o motivo pelo qual eu lhe abandonaria mais uma vez.
- Eu vou contar tudo a ela. - Afirmei triste.
Entramos no seu quarto. Nina que antes estava aborrecida, agora ria em alto tom com minha amiga.
- Então, o Kevin pegou o picolé e...
- Não complete essa história! - Graças a Deus fui rápido de interromper o desfecho.
- Então essa é a história do picolé? - Nina pareceu curiosa. - Um dia você irá me contar ela direitinho.
- É. - Suspirei aliviado. - Mas esse dia não será hoje.
Nina se levantou da cama de Liz e correu até mim, só naquela hora percebeu meu estado. Alisou meu corpo em busca de ferimentos, até que achou três ematômas no abdome.
- Nina, deixa isso pra depois. - Já sabia o que queria fazer.
- Mas tá roxo pra caramba.
Chloe riu discretamente. Talvez pelo fato de Nina falar "caramba" em vez de um palavrão. Mas ela era assim mesmo: doce e inocente.
- Eu sei. Só... - Coloquei a mão sobre seu ombro. - Deixa pra depois.
- A gente precisa de um banho. - Ethan suplicou. Já estava a um passo de invadir o banheiro.
Liz apontou com a cabeça para uma porta de madeira no fundo do quarto.
- É todo seu, visão além do alcance.
- Quem te contou isso? - Perguntou Ethan.
- Sua namorada.
- Nós não somos... - O uníssono do casal terminou quando perceberam que falavam ao mesmo tempo. As palavras eram iguais, mas os tons diferentes, obviamente Chloe era a dona do tom mais rude.
- Vai primeiro, Ethan. - Pedi. - Enquanto tu toma banho, eu conto tudo a ela.
- Só sei que eu e Chloe já tomamos nosso banho. E ah, quase esqueci. - Nina pegou sua mochila. De lá retirou duas escovas de dente. - Pensa rápido. - As jogou em nós.
Pensando rápido ou não, eu nunca iria pegar já que seu lançamento não foi lá dos melhores.
- Foi mal. - Ela sorriu desajeitada
- Valeu. - Apanhei a escova do chão. Assim como Ethan.
O arqueiro então pegou uma toalha emprestada do guarda roupas de Liz e seguiu ao banheiro. Fechou a porta, um detalhe "importante" de ressaltar é que Ethan cantou Spice Girls novamente no banheiro.
- Ei, Nina. - Chloe chamou. - Vamos pra sala. Lá tem um videogame do "caramba" , como diria você. E tem um joguinho lá de luta, garanto que isso não tem no acampamento.
Chloe falava em tom mais calmo dessa vez, ela era esperta e sabia que o momento era difícil, eu tinha que contar para a minha melhor amiga uma história inacreditável e dizer a ela que eu nunca mais a veria de novo.
- O que é um videogame? - Nina pareceu confusa. Relaxa, estávamos em 2001 e Nina passou sua vida em um acampamento. Então...
- Você verá. - Chloe a puxou pelo braço.
Então elas seguiram até a sala.
E eu estava sozinho com Liz. Seus cabelos castanhos estavam tão bonitos e limpos , diferente dos meus que até sangue tinham. Aqueles olhos, me faziam lembrar a infância, de como fui feliz com ela quando a vida era normal. Mas agora, os mesmos olhos também eram tomados por preocupação, medo e angústia. Ela temia que o quê Chloe e Nina haviam contado fosse verdade. E infelizmente, era sim. Então, eu contei tudo a ela. Sobre a missão, meus poderes, a história desde o início. Ela ficou em silêncio, nenhuma expressão ou reação.
- Liz, eu...
Ela me interrompeu com um abraço. Suas lágrimas caíram em meu colo e seus braços me apertaram mais.
- Por favor, não vai embora. - Disse ainda chorando. - Eu não tenho nenhum outro amigo. Você faz parte da minha vida, desde aquela segunda-feira de merda em que entrou naquele colégio. Eu achei você legal e quis que fosse meu amigo. E graças a Deus você quis a mesma coisa, diferente de todo mundo, você quis a mesma coisa. Mesmo com todos dizendo que éramos namorados e não amigos, eu nunca te abandonei e você também não fez o mesmo. Logo a gente passou a fazer tudo juntos, e como eu amava isso. Mesmo depois dos quinze, nunca perdeu a graça. E então você morre, Londres é atacada por montros e tudo vira de ponta cabeça. Eu chorei, ah, você nem imagina como eu chorei, droga. Mas aí você volta alguns dias depois e diz que não pode ficar? Ah, não. Eu irei com você. Eu não vou te deixar sozinho. E não diga que será melhor eu ficar aqui.
Eu sei que ela parecia estar dramatizando as coisas, mas não era bem isso. Há sete anos eu havia entrado na Choose Life sem mal saber o nome do diretor. Minha vida se resumia a ir ao colégio, voltar, ficar com a minha mãe fazendo o dever de casa, depois assistir algo na tevê, dormir e repetir tudo. Assim eram todos os dias da minha vida. Mas então essas tardes de só dever de casa acabaram quando conheci Liz. Ou melhor, Lissandra. Que é seu nome real no qual ela tem vergonha. Enfim, essas tardes agora eram - fazer o dever de casa, sair com Liz para brincar no parquinho e voltar só à noite- Ela assim como eu nunca teve muitos amigos. Com o tempo o parquinho foi substituído por lanchonetes, cinema, ou até mesmo eu ia pra casa dela só pra jogarmos naquele videogame no qual Chloe agora mostrava à Nina. É que a gente foi crescendo e o parquinho foi deixado de lado, claro. Então, ela estar triste por saber que eu terei de ir embora, não é nada dramático para uma amiga de verdade.
- Eu sinto muito. - Lhe abracei mais forte. - Sabe que eu não faria isso se tivesse opção. Entretanto. - Levantei seu queixo. - Eu irei voltar.
Nunca uma mentira havia doído tanto em meu coração, seria praticamente impossível eu vê-la de novo. Eu morreria na missão, e caso não acontecesse, Wind nunca deixaria eu voltar para lá caso não fosse uma missão.
- Promete?
Uma lágrima escorreu pelo meu rosto.
- Eu prometo.
A porta do banheiro foi aberta e Ethan saiu dele. Graças a Deus não estava de toalha, havia vestido seu traje dentro do próprio cômodo. Ele nos viu abraçados e ficou sem jeito. Mas não falou nada, apenas seguiu até a sala.
- Você tinha que tomar banho, não? - Liz riu enquanto enxugava as lágrimas.
- Não estou tão podre assim, estou?
- Hã... eu não disse nada. Agora vai lá, quando essa missão acabar, de alguma maneira eu terei que ter participado da história.
- E isso seria me emprestando seu banheiro por 5 minutos?
- Exatamente.
- Certo. - Peguei da cama a escova que Nina havia me dado. - Me espera lá na sala. Joga um pouco de Mortal Kombat com a Chloe. Mas te digo que se ela perder, é provável que ela quebre seu controle ou arranque os cabos do videogame.
- E ela irá. Afinal, eu vou com o Scorpion.
- Uow. Isso é crueldade.
- Vai logo tomar teu banho. - Ela me empurrou para o banheiro.
E só nele pude ver todos os ematômas e cortes que feriam meu corpo. Se Nina tivesse visto, estaria desesperada. Mas eu não me importava tanto, um bom banho resolveria tudo. Com ele esfriei minha cabeça e limpei alguns cortes que eu havia aderido na luta com Hajick. Por fim vesti novamente meu traje e escovei os dentes. Quando saí do banheiro, Liz estava na sala junto com os demais. E não, elas não estavam jogando Mortal Kombat III.
Após o ataque terrorista em Londres, o governo prometeu tomar medidas drásticas como maior policiamento de guardas civis e do exército. Mais fiscalização em locais públicos e pagos como estádios de futebol, cinemas, ou qualquer outro canto com um alto número de individuos. O mundo está abalado com esse ataque do Estado Islâmico e pretendem cumprir com suas promessas. É altamente recomendável aos cidadãos de Londres que não saiam de casa por breves dias. Mais notícias com Camilla McCartney no L News. Foi o que disse o apresentador do jornal.
- Estado Islâmico? - Fiquei indignado. - Que merda é essa?
- Como eu desconfiava. - Chloe parecia entender a situação mais do que eu.
- É aquela velha história, Chloe? - Perguntou Nina.
- Sim.
- Melhor assim. - Ethan se escorou no braço do sofá.
- Ei, ei, ei. Que história é essa? - Perguntei preocupado.
- Todas as vezes em que há um ataque em longa escala, o governo mente em dizer que foi um atentado terrorista. - Chloe parecia fria. - Ainda mais por conta das explosões.
- Mas o jornais gravaram os lobisomens destruindo tudo. - Protestei.
- O jornal regional da cidade. - Explicou ela. - Possivelmente todas as imagens foram deletadas para não chegar a CNN americana ou qualquer outro jornal importante desse mundo.
- Mas as pessoas que viram o ataque pela tevê como eu vi?
Chloe estava sentada com os pés no sofá, coisa que eu sem querer quase sempre fazia e Liz me dava um soco para tirá-los, caso o contrário seu pai brigava com ela após ver as marcas.
- Estava ao vivo. Era no canal regional de Londres. Uma hora, ou duas, depois tudo havia sido apagado pelo governo e a história havia sido reescrita. Ninguém que não viu vai acreditar na história original. E então eles colocam a culpa nos terroristas, dizem que vão tomar medidas mais eficientes e escondem tudo. E o Estado Islâmico não se manifesta, apenas aproveitam a fama que levam.
- Ah, merda. - Me sentei ao lado de Nina e coloquei as mãos sobre a cabeça. - Mas por que isso?
- Para que as pessoas não se assustem. Já imaginou como reagiriam ao saber dos Azuis e dos monstros? - Ethan também parecia acostumado com isso. - Relaxa, cara. Já é a 3° vez que acontece. E por isso, os Protetores nunca levaram o crédito por nada. O governo sempre conta que são agentes especiais deles que fizeram o trabalho.
- É uma mentira necessária. - Assumiu Nina. - Meu pai e nenhum outro Protetor quis que as pessoas soubessem de nós.
Ethan estava escorado na parede de braços cruzados agora.
- É. Assim é melhor. - Ajeitou seu cabelo ainda molhado do banho.
- Mas para onde vamos agora? - Nina deu de ombros.
- Antes de morrer, Hajick disse que o comboio dos Azuis estava em Liverpool.
- Antes de mo... você... - Chloe decidiu se interromper. Talvez soubesse que falar que eu matei alguém na frente de Liz a assustaria, ou talvez não, mas por mim seria melhor que não falasse. - Fez algo que nem Travis, o Tubarão Branco, conseguiu - admitiu ela.
- Travis é o Tubarão Branco? - Perguntei. Foi mal, é que às vezes eu me confundia.
- Não, é a Serpente Negra.
- Também tem essa? - Me impressionei.
- Eu tava sendo irônica, idiota.
- Mas admito que seria show uma Serpente Negra. - Confessou Ethan.
- Enfim. Temos que partir. Liverpool não fica tão perto de Londres. - Chloe pareceu decidida.
Nina estava andando pelos cantos enquanto eu conversava com Chloe. Ela parecia preocupada mas eu não sabia o porquê. Seus olhos estavam vidrados no quintal da casa, então ela se espantou.
- Pessoal! Nada bom.
- O que? - Falei em uníssono com Ethan.
- Avassaladores.
- Merda! Merda! Merda! - Xingou Ethan.
- O que é um avassalador? - Perguntei.
- São demônios de seis braços. - Respondeu.
- Perfeito. - Longinus apareceu em minha mãos. - Liz, se tranca no quarto. Chloe, pode proteger ela?
- Não será problema. - Bufou.
Ethan pegou seu arco que estava em uma istante da sala.
Chloe puxou suas adagas.
Nina rapidamente tirou da mochila o facão de Hank.
- Não sei como chegaram até aqui, mas tenho certeza que não voltarão de onde vieram. - Ethan afirmou enquanto apontava uma flecha pela janela.
- Esqueci de mencionar que eles são anões. É, demônios anões. Não, espera, demônios anões de seis braços.
- Certo, turma da Branca de Neve. Vocês não irão fugir disto. - Disparou a primeira.

A Sexta Irmandade (Vol.1) - O Lobo Vermelho Onde histórias criam vida. Descubra agora