Vidas Mecânicas

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Vidas Mecânicas




Respirar era doloroso. O coração já apanhava mais do que batia. O velho Ney, doente há anos, estava internado em um antigo hospital. Por se recusar à tratamentos cibernéticos, sofria mais do que deveria. "Não me tornarei uma máquina", dizia o velho. "Morrerei como nasci: um humano".

Ney nasceu em 2010, época em que as pessoas ainda eram verdadeiros humanos, seres biológicos. No entanto, novena e sete anos depois, o mundo havia evoluído. Talvez para pior.

Anos atrás, com a medicina precária, sua doença rara era de difícil tratamento. Em 2107, todavia, com a cybermedicina evoluída, os nano-robôs seriam capazes de curá-lo. Mas ele se recusava a se tornar uma máquina. Sua decisão o fez ter os dias contados. E seus dias estavam chegando ao fim.

Deitado na maca, Ney avistou sua netinha entrando no quarto do hospital, de cabeça baixa, indo visitá-lo.

– Vovô... – Ela o fitou repleto de tubos em seu rosto. – Não se vá, por favor... precisamos de você.

- Querida... – fez carinho nos cabelos cacheados da neta. – Isto é inevitável. Um dia teria que partir. E este dia finalmente chegou.

- Mas por que não aceita a cura? Podemos te dar um coração novinho! Um pulmão novo também! Por que não reconstrói sua coluna? Vai poder voltar a correr como fazia quando era jovem!

- Ora, minha netinha... O que fizeram contigo e aquilo que chamaste de coração? – Ney tossiu forte. Os aparelhos começaram a apitar. A garotinha se desesperou, mas Ney logo se controlou. Removeu o tubo de sua boca, limpou a saliva dela, então pôs o tubo novamente. – É uma pena que tão cedo já tenha perdido sua vida.

- Mas vô, eu tô viva! Olha! – Ela deu pulinhos na frente do velho. – É você que tá deixando a gente!

- Eu não estou deixando ninguém, minha lindinha. A vida é assim. Um dia, todos nós temos de ir embora. Mas sabe... não tenho nada do que reclamar. Vivi de verdade! Aproveitei o futebol, os carros manuais, as festas e baladas. Mas o principal: aproveitei o pôr do Sol! Vi paisagens com árvores que você jamais poderá ver!

- Tenho as fotos, vovô. Vi como o mundo era antigamente.

- Fotos... É assim que vocês vivem hoje? Realidades virtuais? Fotos, vídeos? Cyberemoções? Isso não é a vida... é a Matrix.

- Samara – entrou um homem no quarto. – Deixa eu falar com o meu irmão. – O irmão de Ney, apesar de ser mais velho, estava completamente em forma. Tinha os músculos saltando do corpo, uma pele seca, olhos brilhando com implantes neurais e veias prateadas, de tantos nano-robôs que circulavam em seu sangue. Embora possuísse 112 anos, parecia ter apenas 50. – Irmão... que merda tu tá falando pra sua neta?

- Que eu vivi, e morrerei feliz – Ney sorriu.

- Tu é um fraco. Vai deixar a família, então? Vai se entregar pra morte? Nem ao menos vai lutar contra ela, merda?

- Suas realidades cibernéticas também permitem matar aquilo que não pode ser morto? – Ney permaneceu sorrindo. – Não se combate a morte... não se luta contra ela. Apenas a aceitamos, pois ela é um perpétuo que sempre chegará na hora que deve chegar.

- Então vai ser assim... – Seu irmão se mostrou decepcionado. – Vai deixar sua família... um covarde! Nem parece ter nosso sangue, irmão! Nossa família sempre lutou!

- "Nosso sangue"? Idiotice... Vocês não têm o meu sangue. Nenhum de vocês. Preencheram o vazio de seu coração com nano-robôs e emoções cibernéticas. Nada do que vivem é real! Nem o sangue de vocês é natural. Me diga... que formato de arquivo é preciso ter pra voltar a ser teu irmão?

- Então... acho que tu tem que se despedir do teu filho.

O irmão de Ney deu espaço para que seu filho entrasse. Este claramente havia se entregado ao mundo cibernético. O filho de Ney era alto, bonito, com o corpo malhado, longos cabelos loiros, olhos verdes e brilhantes, conexões neurais no cérebro, ouvidos cibernéticos, mãos metálicas... até seu peito brilhava com a luz esverdeada de um aparelho que substituía seu coração.

- Não nos deixe – disse com uma expressão fria.

- Está tão tomado por ciberemoções que nem consegue chorar?

- Por que você insiste nisso? – Ele possuía uma expressão vazia, mas sua voz indicava sofrimento. – Por que insiste em negar o futuro? Por que insiste em viver no século vinte e um?

- Por que vocês tanto insistem em ser máquinas?

- Eu não sou uma máquina! Larga de ser ignorante! Eu sou um humano, pai! Só sou melhorado. Talvez eu alcance meus duzentos ou trezentos anos!

- Você não percebe, filho... mas eles realmente arrancaram seu coração. Onde está teu amor? Antes do mar secar, tu secou.

- Amor... – o filho já estava cansado daquilo. – Amor não tem nada a ver com o coração, pai. Tá tudo no cérebro. Cérebro! Por que não aceita a evolução da humanidade? Sua geração destruiu o mundo! Derrubaram florestas, secaram os mares, fizeram guerras! A minha geração reconstruiu tudo.

- Antes do mundo, o amor acabou.

- Ah... você só fala disso. Amor, amor, amor... Olha onde isso levou você, pai! Tá morrendo!

- Sim, estou mesmo – Ney sorriu debaixo dos tubos em seu rosto. – E não vejo nada demais nisso. Sabe, quando pequeno eu sonhava em ser imortal. Sabe por quê? Porque eu queria ver os avanços da tecnologia. Queria poder ler quantos livros eu quisesse. Ver todos os filmes clássicos, e ainda acompanhar os novos. Sem contar nas séries... ah, eu amava séries! Mas sabe... hoje eu percebo as coisas de modo diferente. Eu já vi tudo de bom que a humanidade fez. O mundo acabou, filho... e o que restou? Sem sinal de vida aqui.

- Como você é burro, pai. Prefere morrer.

- Melhor morrer humano do que viver máquina.

- Que assim seja...

Ney viu seu filho deixando o quarto, e levando consigo toda a família de volta para casa. O velho estava sozinho, deitado em seu leito de morte, à espera de sua hora. E quando essa hora chegou, havia falecido o último humano da Terra.


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Nota do autor:


Olá, leitores! Gostaram do conto?

Este foi inspirado na música "Laranja Mecânica" do Rapper Rashid. Busquem no Youtube ou ouçam aqui mesmo, é uma ótima música.

Digam o que acharam deste conto, comentários são sempre ótimos. Prometo responder todos. 

Obrigado pela leitura, e até a próxima!

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