Naquela noite memorável, tive um sonho.
Eu não sabia como tinha chegado ali outra vez, mas eu estava na mesma sala de espera em que estivera no sonho com a Morte. Desta vez, contudo, eu não acordara espatifado no chão: eu estava posto cuidadosamente sobre um dos sofás, deitado em posição fetal, sozinho no espaço escuro. A sala era igual, idêntica à anterior; as paredes mudas, o tapete no chão, a iluminação rubra; tudo igual. A Morte, porém, não estava presente.
Levantei-me, tonto, e não soube exatamente o que fazer, para onde ir. Explorei o ambiente ao redor com descuido, tentando, na realidade do sonho, fazer sentido do que estava acontecendo. Foi quando olhei para cima da mesa do escritório que vi uma borboleta agitando as asas devagar, como se estivesse concentrada em uma atividade muito delicada. Eu não via sua cor, pois tudo na sala estava banhado pelo matiz vermelho da luz que vinha de lugar nenhum. As asas, porém, eram luzidias, brilhavam fraco e em intervalos curtos. Curioso, aproximei-me para tentar tocar o inseto raro, mas, ao aproximar meu dedo de uma das asas, ele voou.
Voou pela janela, deixando-me sozinho no cômodo. A janela estava aberta. Caminhei até ela e me dobrei sobre o parapeito, olhando para baixo. Eu estava no mesmo prédio do outro sonho; no mesmo ducentésimo andar; no mesmo... sonho outra vez? Ou quase? O lugar era o mesmo, mas o motivo que me levara a ali ainda me era desconhecido. O vento sutil que me soprou pelo rosto era outro indício de que agora as coisas eram diferentes. Lá embaixo, era noite, e eu quase nada conseguia enxergar do alto daquela torre de paredes descascadas.
Intrigado, fiz a única coisa que me faltava fazer: tentar sair da sala. Deixei a janela aberta e caminhei em direção à porta de madeira, que, para minha surpresa, estava destrancada. Abri-a sem qualquer dificuldade. Do lado de fora, um pequeno hall e a porta de um elevador; nada mais. Sem janelas, sem tapetes, sem decorações. A luz, porém, era branca do lado de fora, bem como brancas eram as paredes e o piso. Eu não sentia medo nenhum, tampouco nervosismo, ansiedade, dúvida. Eu estava na mais perfeita paz de espírito.
Fechei a porta atrás de mim e dei dois passos adiante. Apertei o botão do elevador e, segundos depois, a porta dupla de metal se abriu à minha frente, convidando-me a entrar. Dentro do cubículo, nada: nem pessoas nem espelhos nem uma saída de emergência. Tudo que havia, além da porta, era um único botão, também branco. Tentei, na consciência limitada do meu sonho, me lembrar de algo que a Morte pudesse ter dito sobre algum elevador, mas não consegui. Eu teria morrido? Seria aquele o elevador que me levaria para o céu ou para o inferno?... Eu não sabia. Apertei o botão de modo mecânico, rendido à impossibilidade de conhecer a consequência da minha decisão.
A porta então se fechou e as luzes dentro do espaço piscaram. As engrenagens faziam um rugido alto, assustador, e minha noção de locomoção inexistia: eu não conseguia definir se estava indo para cima ou para baixo; eu só sabia que o elevador se movia, pois vibrava forte sob os meus pés.
Um baque alto e pontual deu fim à minha viagem. Ao som do tilintar de um sino típico de elevadores, as portas se abriram e trouxeram à minha visão uma claridade tremenda, que fez meus olhos se espremerem. Já não era mais noite, eu tinha certeza. Eu estava agora em uma espécie de estação de trem. O ruído estridente que eu ouvira não era do elevador: era das locomotivas; a claridade era a do céu azul claro e cheio de nuvens que iluminava a cidade.
Confuso, saí do elevador, e, junto comigo, surgiram, sem explicação aparente, uma mochila nas minhas costas e uma mala de viagem, que eu arrastava pela alça rumo ao desconhecido. Era um dia cheio; havia inúmeras pessoas indo e vindo para lá e para cá. Eu estava perdido, mas, ao mesmo tempo, não: eu sabia que estava no lugar certo.
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Prazer e Remissão (romance gay)
Romance::: LIVRO COMPLETO! ::: NÃO RECOMENDÁVEL A MENORES DE 18 ANOS. Quando ingere uma superdose de sedativos para dar cabo da própria vida, Eugênio só quer se livrar daquele poço sem fundo de desgosto, tristeza e solidão. Ao acordar deitado no chão de...