capítulo 3

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Calou. Halim baixou a cabeça, pensou em falar do outro filho, hesitou.
Disse: “Tua mãe...”, e também calou. Viu o rosto crispado de Yaqub, viu o filho
levantar-se, aperreado, arriar a calça e mijar de frente para a parede do bar em
plena Cinelândia. Mijou durante uns minutos, o rosto agora aliviado,
indiferente às gargalhadas dos que passavam por ali. Halim ainda gritou, “Não,
tu não deves fazer isso...”, mas o filho não entendeu ou fingiu não entender o
pedido do pai.
Ele teve que engolir o vexame. Esse e outros, de Yaqub e também do
outro filho, Omar, o Caçula, o gêmeo que nascera poucos minutos depois. O
que mais preocupava Halim era a separação dos gêmeos, “porque nunca se
sabe como vão reagir depois...”. Ele nunca deixou de pensar no reencontro dos
filhos, no convívio após a longa separação. Desde o dia da partida, Zana não
parou de repetir: “Meu filho vai voltar um matuto, um pastor, um ra’í. Vai
esquecer o português e não vai pisar em escola porque não tem escola lá na
aldeia da tua família”.
Aconteceu um ano antes da Segunda Guerra, quando os gêmeos
completaram treze anos de idade. Halim queria mandar os dois para o sul do
Líbano. Zana relutou, e conseguiu persuadir o marido a mandar apenas
Yaqub. Durante anos Omar foi tratado como filho único, o único menino.
No centro do Rio, Halim comprou roupas e um par de sapatos para
Yaqub. Na viagem de volta a Manaus, fez um longo sermão sobre educação
doméstica: que não se deve mijar na rua, nem comer como uma anta, nem
cuspir no chão, e Yaqub, sim, Baba, a cabeça baixa, vomitando quando o
bimotor chacoalhava, os olhos fundos no rosto pálido, a expressão de pânico
toda vez que o avião decolava ou aterrissava nas seis escalas entre o Rio de
Janeiro e Manaus.
Zana os esperava no aeroporto desde o começo da tarde. Ela estacionou
o Land Rover verde, foi até a varanda e ficou olhando para o leste. Quando viu
o bimotor prateado aproximar-se da cabeceira da pista, desceu correndo,
atravessou a sala de desembarque, subornou um funcionário, caminhou
altiva até o avião, subiu a escada e irrompeu na cabine. Levava um buquê de
helicônias que deixou cair ao abraçar o filho ainda lívido de pavor, dizendo-
lhe, “Meu querido, meus olhos, minha vida”, chorando, “Por que tanta
demora? O que fizeram contigo?”, beijando-lhe o rosto, o pescoço, a cabeça,
sob o olhar incrédulo de tripulantes e passageiros, até que Halim disse,

Dois irmãos (Parado Por Um Tempo)Onde histórias criam vida. Descubra agora