Capítulo 9

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Ela olhou para o marido:
“Imagino como ele desembarcou no Rio. Querem ver a bagagem que
trouxe? Uma trouxa velha e fedorenta! Não é um absurdo?”
“Vamos mudar de assunto”, pediu Halim. “Sacos e roupa velha são
coisas que a gente esquece.”
Mudaram de assunto e também de expressão: o rosto de Zana se
iluminou ao ouvir um assobio prolongado — uma senha, o sinal da chegada do
outro filho. Era quase meia-noite quando o Caçula entrou na sala. Vestia
calça branca de linho e camisa azul, manchada de suor no peito e nas axilas.
Omar se dirigiu à mãe, abriu os braços para ela, como se fosse ele o filho
ausente, e ela o recebeu com uma efusão que parecia contrariar a
homenagem a Yaqub. Ficaram juntos, os braços dela enroscados no pescoço
do Caçula, ambos entregues a uma cumplicidade que provocou ciúme em
Yaqub e inquietação em Halim.
“Obrigado pela festa”, disse ele, com um quê de cinismo na voz.
“Sobrou comida para mim?”
“Meu Omar é brincalhão”, Zana tentou corrigir, beijando os olhos do
filho. “Yaqub, vem cá, vem abraçar o teu irmão.”
Os dois se olharam. Yaqub tomou a iniciativa: levantou, sorriu sem
vontade e na face esquerda a cicatriz alterou-lhe a expressão. Não se
abraçaram. Do cabelo cacheado de Yaqub despontava uma pequena mecha
cinzenta, marca de nascença, mas o que realmente os distinguia era a
cicatriz pálida e em meia-lua na face esquerda de Yaqub. Os dois irmãos se
encararam. Yaqub avançou um passo, Halim disfarçou, falou do cansaço da
viagem, dos anos de separação, mas de agora em diante a vida ia melhorar.
Tudo melhora depois de uma guerra.
Talib concordou, Sultana e Estelita propuseram um brinde ao fim da
guerra e à chegada de Yaqub. Nenhum dos dois brindou: os cristais tilintando
e uma euforia contida não animaram os gêmeos. Yaqub apenas estendeu a
mão direita e cumprimentou o irmão. Pouco falaram, e isso era tanto mais
estranho porque, juntos, pareciam a mesma pessoa.
Foi Domingas quem me contou a história da cicatriz no rosto de Yaqub.
Ela pensava que um ciuminho reles tivesse sido a causa da agressão. Vivia  atenta aos movimentos dos gêmeos, escutava conversas, rondava a intimidade
de todos. Domingas tinha essa liberdade, porque as refeições da família e o
brilho da casa dependiam dela.

Dois irmãos (Parado Por Um Tempo)Onde histórias criam vida. Descubra agora