capítulo 14

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O matemático, e também o rapaz altivo e circunspecto que não dava
bola para ninguém; o enxadrista que no sexto lance decidia a partida e
assobiava sem vontade um soprinho de passarinho rouco, antevendo o rei
acuado. Derrotava o adversário emitindo esse assobio meio irritante, anúncio
do inevitável xeque-mate. Dias e noites no quarto, sem dar um mergulho nos
igarapés, nem mesmo aos domingos, quando os manauaras saem ao sol e a
cidade se concilia com o rio Negro. Zana preocupava-se com esse bicho
escondido. Por que não ia aos bailes? “Olha só, Halim, esse teu filho vive
enfurnado na toca. Parece um amarelão mofando na vida.” O pai tampouco
entendia por que ele renunciava à juventude, ao barulho festivo e às
serenatas que povoavam de sons as noites de Manaus.
Que noites, que nada! Ele desprezava, altivo em sua solidão, os bailes
carnavalescos, ainda mais animados nos anos do pós-guerra, com os corsos e
suas colombinas que saíam da praça da Saudade e desciam a avenida num
frenesi louco até o Mercado Municipal; desprezava as festas juninas, a dança
do tipiti, os campeonatos de remo, os bailes a bordo dos navios italianos e os
jogos de futebol no Parque Amazonense. Trancava-se no quarto, o egoísta
radical, e vivia o mundo dele, e de ninguém mais. O pastor, o aldeão apavorado
na cidade? Talvez isso, ou pouco mais: o montanhês rústico que urdia um
futuro triunfante.
Esse Yaqub, que embranquecia feito osga em parede úmida,
compensava a ausência dos gozos do sol e do corpo aguçando a capacidade de
calcular, de equacionar. No colégio dos padres ele encontrava sempre, antes
de qualquer um, o valor de um z, y ou x. Surpreendia os professores: a chave
da mais complexa equação se armava na cabeça de Yaqub, para quem o giz e
o quadro-negro eram inúteis.
O outro, o Caçula, exagerava as audácias juvenis: gazeava lições de
latim, subornava porteiros sisudos do colégio dos padres e saía para a noite,
fardado, transgressor dos pés ao gogó, rondando os salões da Maloca dos Barés,
do Acapulco, do Cheik Clube, do Shangri-Lá. De madrugada, na hora do
último sereno, voltava para casa. E lá estava Zana, impávida na rede
vermelha, no rosto a serenidade fingida, no fundo atormentada, entristecida
por passar mais uma noite sem o filho. Omar mal percebia o vulto arqueado
sob o alpendre. Ia direto ao banheiro, provocava em golfadas a bebedeira da
noite, cambaleava ao tentar subir a escada; às vezes caía, inteiro, o corpanzil suado, esquecido da alquimia da noite. Então ela saía da rede, arrastava o
corpo do filho até o alpendre e acordava Domingas: as duas o desnudavam,
passavam-lhe álcool no corpo e o acomodavam na rede. Omar dormia até
meio-dia. O rosto inchado, engelhado pela ressaca, rosnava pedindo água
gelada, e lá ia Domingas com a bilha: derramava-lhe na boca aberta o líquido
que ele primeiro bochechava e depois sorvia como uma onça sedenta. Halim
se incomodava com isso, detestava sentir o cheiro do filho, que empestava o
lugar sagrado das refeições. O pai rondava a sala, caminhava em diagonal, o
olhar de relance na rede vermelha sob o alpendre.

Dois irmãos (Parado Por Um Tempo)Onde histórias criam vida. Descubra agora