Capítulo 4

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"Chega! Agora vamos descer, o Yaqub não parou de provocar, só faltou pôr as
tripas para fora”. Mas ela não cessou os afagos, e saiu do avião abraçada ao
filho, e assim desceu a escada e caminhou até a sala de desembarque,
radiante, cheia de si, como se enfim tivesse reconquistado uma parte de sua
própria vida: o gêmeo que se ausentara por capricho ou teimosia de Halim. E
ela permitira por alguma razão incompreensível, por alguma coisa que parecia
insensatez ou paixão, devoção cega e irrefreável, ou tudo isso junto, e que ela
não quis ou nunca soube nomear.
Agora ele estava de volta: um rapaz tão vistoso e alto quanto o outro
filho, o Caçula. Tinham o mesmo rosto anguloso, os mesmos olhos castanhos e
graúdos, o mesmo cabelo ondulado e preto, a mesmíssima altura. Yaqub dava
um suspiro depois do riso, igualzinho ao outro. A distância não dissipara certos
tiques e atitudes comuns, mas a separação fizera Yaqub esquecer certas
palavras da língua portuguesa. Ele falava pouco, pronunciando monossílabos
ou frases curtas; calava quando podia, e, às vezes, quando não devia.
Zana logo percebeu. Via o filho sorrir, suspirar e evitar as palavras, como
se um silêncio paralisante o envolvesse.
No caminho do aeroporto para casa, Yaqub reconheceu um pedaço da
infância vivida em Manaus, se emocionou com a visão dos barcos coloridos,
atracados às margens dos igarapés por onde ele, o irmão e o pai haviam
navegado numa canoa coberta de palha. Yaqub olhou para o pai e apenas
balbuciou sons embaralhados.
“O que aconteceu?”, perguntou Zana. “Arrancaram a tua língua?”
“La, não, mama”, disse ele, sem tirar os olhos da paisagem da infância,
de alguma coisa interrompida antes do tempo, bruscamente.
Os barcos, a correria na praia quando o rio secava, os passeios até o
Careiro, no outro lado do rio Negro, de onde voltavam com cestas cheias de
frutas e peixes. Ele e o irmão entravam correndo na casa, ziguezagueavam
pelo quintal, caçavam calangos com uma baladeira. Quando chovia, os dois
trepavam na seringueira do quintal da casa, e o Caçula trepava mais alto, se
arriscava, mangava do irmão, que se equilibrava no meio da árvore, escondido
na folhagem, agarrado ao galho mais grosso, tremendo de medo, temendo
perder o equilíbrio. A voz de Omar, o Caçula: “Daqui de cima eu posso
enxergar tudo, sobe, sobe”. Yaqub não se mexia, nem olhava para o alto:
descia com gestos meticulosos e esperava o irmão, sempre o esperava, não
gostava de ser repreendido sozinho. Detestava os ralhos de Zana quando
fugiam nas manhãs de chuva torrencial e o Caçula, só de calção, enlameado,

Dois irmãos (Parado Por Um Tempo)Onde histórias criam vida. Descubra agora