Capítulo 12

183 4 0
                                    

Ela chorou quando viu o rosto de Yaqub, disse Domingas. Beijava-lhe a
face direita e chorava, aflita, ao ver a outra face inchada, costurada em
semicírculo. Treze pontos. O fio preto da costura parecia uma pata de
caranguejeira. Yaqub, calado, matutava. Evitava falar com o outro.
Desprezava-o? Remoía, mudo, a humilhação?
“Cara de lacrau”, diziam-lhe na escola. “Bochecha de foice.” Os
apelidos, muitos, todas as manhãs. Ele engolia os insultos, não reagia. Os pais
tiveram de conviver com um filho silencioso. Temiam a reação de Yaqub,
temiam o pior: a violência dentro de casa. Então Halim decidiu: a viagem, a
separação. A distância que promete apagar o ódio, o ciúme e o ato que os
engendrou.
Yaqub partiu para o Líbano com os amigos do pai e regressou a Manaus
cinco anos depois. Sozinho. “Um rude, um pastor, um ra’í. Olha como o meu
filho come!”, lamentava-se Zana.
Ela tentou esquecer a cicatriz do filho, mas a distância trazia para mais
perto ainda o rosto de Yaqub. As cartas que ela escreveu!
Dezenas? Centenas, talvez. Cinco anos de palavras. Nenhuma resposta.
As raras notícias sobre a vida de Yaqub eram transmitidas por amigos ou
conhecidos que voltavam do Líbano. Um primo de Talib que visitara a família
de Halim avistara Yaqub no porão de uma casa. Estava sozinho e lia um livro
sentado no chão, onde havia um monte de figos secos. O rapaz tentou falar
com ele, em árabe e português, mas Yaqub o ignorou. Zana passou a noite
culpando Halim, e ameaçou viajar para o Líbano durante a guerra. Então ele
escreveu aos parentes e mandou o dinheiro da passagem de Yaqub.
Isso Domingas me contou. Mas muita coisa do que aconteceu eu
mesmo vi, porque enxerguei de fora aquele pequeno mundo. Sim, de fora e às
vezes distante. Mas fui o observador desse jogo e presenciei muitas cartadas,
até o lance final.
Nos primeiros meses depois da chegada de Yaqub, Zana tentou zelar por
uma atenção equilibrada aos filhos. Rânia significava muito mais do que eu,
porém menos do que os gêmeos. Por exemplo: eu dormia num quartinho
construído no quintal, fora dos limites da casa. Rânia dormia num pequeno
aposento, só que no andar superior. Os gêmeos dormiam em quartos
semelhantes e contíguos, com a mesma mobília; recebiam a mesma mesada,as mesmas moedas, e ambos estudavam no colégio dos padres. Era um
privilégio; era também um transtorno.

Dois irmãos (Parado Por Um Tempo)Onde histórias criam vida. Descubra agora