Capítulo 30

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em tempo de penúria. Era, na aparência, indiferente ao êxito do irmão. Não
participava da leitura das cartas, ignorava o oficial da reserva e futuro
politécnico. No entanto, mangava das fotografias expostas na sala. “Um lesão
com pinta de importante”, ele dizia, e com uma voz tão parecida com a do
irmão que Domingas, assustada, procurava na sala um Yaqub de carne e osso.
A mesma voz, a mesma inflexão. Na minha mente, a imagem de Yaqub era
desenhada pelo corpo e pela voz de Omar. Neste habitavam os gêmeos, porque
Omar sempre esteve por ali, expandindo sua presença na casa para apagar a
existência de Yaqub. Quando Rânia beijava as fotos do irmão ausente, Omar
fazia umas macacadas, se exibia, era um contorcionista tentando atrair a
atenção da irmã. Mas a lembrança de Yaqub triunfava. As fotografias
emitiam sinais fortes, poderosos de presença. Yaqub sabia disso? Sempre com a
expressão altaneira, o cabelo penteado, o paletó impecável, as sobrancelhas
grossas e arqueadas, e um sorriso sem vontade, difícil de compreender. O
duelo entre os gêmeos era uma centelha que prometia explodir.
“Duelo? Melhor chamar de rivalidade, alguma coisa que não deu certo
entre os gêmeos ou entre nós e eles”, revelou-me Halim, mirando a
seringueira centenária do quintal.
Os gêmeos não nasceram logo depois da morte de Galib. Halim queria
gozar a vida com Zana, queria tudo, viver tudo com ela, só os dois, siderados
pelo egoísmo da paixão. Ele exagerava a beleza dela e ria quando falava isso:
que ela ficava mais linda assim, enlutada, viúva do pai.
Deitados na rede, conversavam sobre Galib, a infância de Zana em
Biblos, interrompida aos seis anos, quando ela e o pai embarcaram para o
Brasil. O pai a levava para banhar-se no Mediterrâneo, depois caminhavam
juntos pelas aldeias, eles e um médico formado em Atenas, o único doutor de
Biblos; visitavam amigos e conhecidos, cristãos intimidados e mesmo
perseguidos pelos otomanos. Em cada casa visitada, o doutor atendia o
enfermo e Galib preparava um prato de raro sabor. O homem que deixara a
clientela do restaurante manauara com água na boca já era um exímio
cozinheiro na sua Biblos natal. Cozinhava com o que havia nas casas de pedra
de Jabal al Qaraqif, Jabal Haous e Jabal Laqlouq, montanhas onde a neve
brilhava sob a intensidade do azul. A beleza misteriosa, bíblica, dos cedros
milenares nas ondulações brancas, às vezes douradas pelo sol invernal — ela
fazia uma pausa, e os olhos, úmidos, roçavam o rosto de Halim. E quando
visitava uma casa à beira-mar, Galib levava seu peixe preferido, o sultan
ibrahim, que temperava com uma mistura de ervas cujo segredo nunca revelou. No restaurante manauara ele preparava temperos fortes com a
pimenta-de-caiena e a murupi, misturava-as com tucupi e jambu e regava o
peixe com esse molho. Havia outros condimentos, hortelã e zatar, talvez.
“Ali naquele canto ele cultivava as ervas do Oriente”, disse Halim,
apontando um quadrado de capim, ao lado da seringueira.
Enlutada, Zana se esquivava das carícias do marido e voltava ao assunto,
falando na imagem do pai, no rosto do pai, nos gestos do homem que a criara
desde a morte de sua mãe. Passou um bom tempo sem tirar da boca o nome de
Galib. Os sonhos que ela lhe contava: pai e filha abraçados à beira-mar,
entrando na água que levou a mãe dela. Os dois, juntos no sonho, sempre
perto do mar, contemplando o rochedo escuro como um navio encalhado,
enferrujado. Relembrou o dia em que leu para o pai os gazais e disse, à
queima-roupa, sem um triz de hesitação: “Vou me casar com esse Halim”.
“Passei meses assim, rapaz”, ele disse balançando a cabeça. “Quatro,
cinco meses, nem sei mais. Pensei que ela não gostava mais de mim, pensei
em levá-la a Biblos, desenterrar o Galib e dizer para ela: Fica com os ossos do
teu pai, ou então vamos levar essa ossada para o Brasil, aí tu conversas com os
restos dele até o fim da vida.”
Não, não disse nada disso. Esperou: paciente, insistente na paciência.
Então ela sugeriu que abrissem um pequeno comércio na rua dos Barés, entre
o porto e a igreja. Ali o movimento era de multidão: um vaivém noite e dia.
Fechariam o restaurante, porque todos aqueles clientes, com suas anedotas
obscenas, histórias de naufrágio e seres encantados, lembravam-lhe o pai.
Halim concordou. Concordava com tudo, desde que todos os assentimentos
terminassem na rede ou na cama ou mesmo no tapete da sala.
Na época em que abriram a loja, uma freira, Irmãzinha de Jesus,
ofereceu-lhes uma órfã, já batizada e alfabetizada. Domingas, uma beleza de
cunhantã, cresceu nos fundos da casa, onde havia dois quartos, separados por
árvores e palmeiras.
“Uma menina mirrada, que chegou com a cabeça cheia de piolhos e
rezas cristãs”, lembrou Halim. “Andava descalça e tomava bênção da gente.
Parecia uma menina de boas maneiras e bom humor: nem melancólica, nem
apresentada. Durante um tempinho, ela nos deu um trabalho danado, mas
Zana gostou dela. As duas rezavam juntas as orações que uma aprendeu em
Biblos e a outra no orfanato das freiras, aqui em Manaus.” Halim sorriu ao
comentar a aproximação da esposa com a índia. “O que a religião é capaz de
fazer”, ele disse. “Pode aproximar os opostos, o céu e a terra, a empregada e a

Dois irmãos (Parado Por Um Tempo)Onde histórias criam vida. Descubra agora