capitulo 26

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A intimidade com os filhos, isso o Halim nunca teve. Uma parte de sua
história, a valentia de uma vida, nada disso ele contou aos gêmeos. Ele me
fazia revelações em dias esparsos, aos pedaços, “como retalhos de um tecido”.
Ouvi esses “retalhos”, e o tecido, que era vistoso e forte, foi se desfibrando até
esgarçar.
Ele padeceu. Ele e muitos imigrantes que chegaram com a roupa do
corpo. Mas acreditava, bêbado de idealismo, no amor excessivo, extático, com
suas metáforas lunares. Um romântico tardio, um tanto deslocado ou
anacrônico, alheio às aparências poderosas que o ouro e o roubo propiciam.
Talvez pudesse ter sido poeta, um flâneur da província; não passou de um
modesto negociante possuído de fervor passional. Assim viveu, assim o
encontrei tantas vezes, pitando o bico do narguilé, pronto para revelar
passagens de sua vida que nunca contaria aos filhos.
Logo todos na cidade souberam: Halim se embeiçara por Zana. As cristãs
maronitas de Manaus, velhas e moças, não aceitavam a ideia de ver Zana
casar-se com um muçulmano. Ficavam de vigília na calçada do Biblos,
encomendavam novenas para que ela não se casasse com Halim. Diziam a
Deus e o mundo fuxicos assim: que ele era um mascate, um teque-teque
qualquer, um rude, um maometano das montanhas do sul do Líbano que se
vestia como um pé-rapado e matraqueava nas ruas e praças de Manaus. Galib
reagiu, enxotou as beatas: que deixassem sua filha em paz, aquela ladainha
prejudicava o movimento do Biblos. Zana se recolheu ao quarto. Os clientes
queriam vê-la, e o assunto do almoço era só este: a reclusão da moça, o amor
louco do “maometano”. Inventaram que Halim havia oferecido um dote ao
viúvo, e outras lorotas, mais maldosas, vozes de todos os cantos ricocheteando
aqui e ali. Praga de palavras: cada um inventa duas e todos acreditam.
“Ah, essas paixões na província”, ria Halim. “É como estar no palco de
um teatro, ouvindo a plateia vaiar dois atores, os dois amantes. E quanto mais
vaiavam, mais eu perfumava o lençol da primeira noite.”
Zana não escutava vaias nem conselhos; escutava sua própria voz recitar os gazais de Abbas. Assim, duas semanas, indecisa: nem sim nem não.
Ela era a pérola do pai, que lhe levava as refeições, contava-lhe as novidades
do dia, as histórias dos clientes, um recente assassinato que abalara a cidade.
Ele não tocava no assunto do Halim, e ela, com o olhar, pedia para decidir
sozinha.

Dois irmãos (Parado Por Um Tempo)Onde histórias criam vida. Descubra agora