A intimidade com os filhos, isso o Halim nunca teve. Uma parte de sua
história, a valentia de uma vida, nada disso ele contou aos gêmeos. Ele me
fazia revelações em dias esparsos, aos pedaços, “como retalhos de um tecido”.
Ouvi esses “retalhos”, e o tecido, que era vistoso e forte, foi se desfibrando até
esgarçar.
Ele padeceu. Ele e muitos imigrantes que chegaram com a roupa do
corpo. Mas acreditava, bêbado de idealismo, no amor excessivo, extático, com
suas metáforas lunares. Um romântico tardio, um tanto deslocado ou
anacrônico, alheio às aparências poderosas que o ouro e o roubo propiciam.
Talvez pudesse ter sido poeta, um flâneur da província; não passou de um
modesto negociante possuído de fervor passional. Assim viveu, assim o
encontrei tantas vezes, pitando o bico do narguilé, pronto para revelar
passagens de sua vida que nunca contaria aos filhos.
Logo todos na cidade souberam: Halim se embeiçara por Zana. As cristãs
maronitas de Manaus, velhas e moças, não aceitavam a ideia de ver Zana
casar-se com um muçulmano. Ficavam de vigília na calçada do Biblos,
encomendavam novenas para que ela não se casasse com Halim. Diziam a
Deus e o mundo fuxicos assim: que ele era um mascate, um teque-teque
qualquer, um rude, um maometano das montanhas do sul do Líbano que se
vestia como um pé-rapado e matraqueava nas ruas e praças de Manaus. Galib
reagiu, enxotou as beatas: que deixassem sua filha em paz, aquela ladainha
prejudicava o movimento do Biblos. Zana se recolheu ao quarto. Os clientes
queriam vê-la, e o assunto do almoço era só este: a reclusão da moça, o amor
louco do “maometano”. Inventaram que Halim havia oferecido um dote ao
viúvo, e outras lorotas, mais maldosas, vozes de todos os cantos ricocheteando
aqui e ali. Praga de palavras: cada um inventa duas e todos acreditam.
“Ah, essas paixões na província”, ria Halim. “É como estar no palco de
um teatro, ouvindo a plateia vaiar dois atores, os dois amantes. E quanto mais
vaiavam, mais eu perfumava o lençol da primeira noite.”
Zana não escutava vaias nem conselhos; escutava sua própria voz recitar os gazais de Abbas. Assim, duas semanas, indecisa: nem sim nem não.
Ela era a pérola do pai, que lhe levava as refeições, contava-lhe as novidades
do dia, as histórias dos clientes, um recente assassinato que abalara a cidade.
Ele não tocava no assunto do Halim, e ela, com o olhar, pedia para decidir
sozinha.

VOCÊ ESTÁ LENDO
Dois irmãos (Parado Por Um Tempo)
RomanceA casa foi vendida com todas as lembranças todos os móveis todos os pesadelos todos os pecados cometidos ou em vias de cometer a casa foi vendida com seu bater de portas com seu vento encanado sua vista do mundo seus imponderáveis [. . .] Carlos Dru...