Ele
não sabia o que dizer: largou o farnel e abriu os braços para enlaçar o corpo
esbelto, alongado por uma pose altiva, o queixo levemente empinado, que lhe
dava um ar autoconfiante e talvez antipático ou alheio. Rânia hipnotizava-se
com a presença do irmão: uma réplica quase perfeita do outro, sem ser o
outro. Ela o observava, queria notar alguma coisa que o diferenciasse do
Caçula. Olhou-o de perto, de muito perto, de vários ângulos; percebeu que a
maior diferença estava no silêncio do irmão recém-chegado. No entanto, ela
ouviu a voz agora grave perguntar “Onde está Domingas?”, e viu o irmão
caminhar até o quintal e abraçar a mulher que o esperava. Entraram no
quartinho onde Domingas e Yaqub haviam brincado. Ele observou os
desenhos de sua infância colados na parede: as casas, os edifícios e as pontes
coloridas, e viu o lápis de sua primeira caligrafia e o caderno amarelado que
Domingas guardara e agora lhe entregava como se ela fosse sua mãe e não a
empregada.
Yaqub demorou no quintal, depois visitou cada aposento, reconheceu os
móveis e objetos, se emocionou ao entrar sozinho no quarto onde dormira. Na
parede viu uma fotografia: ele e o irmão sentados no tronco de uma árvore
que cruzava um igarapé; ambos riam: o Caçula, com escárnio, os braços soltos
no ar; Yaqub, um riso contido, as mãos agarradas no tronco e o olhar
apreensivo nas águas escuras. De quando era aquela foto? Tinha sido tirada
um pouco antes ou talvez um pouco depois do último baile de Carnaval no
casarão dos Benemou. No plano de fundo da imagem, na margem do igarapé,
os vizinhos, cujos rostos pareciam tão borrados na foto quanto na memória de
Yaqub. Sobre a escrivaninha viu outra fotografia: o irmão sentado numa
bicicleta, o boné inclinado na cabeça, as botas lustradas, um relógio no pulso.
Yaqub se aproximou, mirou de perto a fotografia para enxergar as feições do
irmão, o olhar do irmão, e se assustou ao ouvir uma voz: “O Omar vai chegar
de noitinha, ele prometeu jantar conosco”.
Era a voz de Zana; ela havia seguido os passos de Yaqub e queria
mostrar-lhe o lençol e as fronhas em que bordara o nome dele. Desde que
soubera de sua volta, Zana repetia todos os dias: “Meu menino vai dormir com
as minhas letras, com a minha caligrafia”. Ela dizia isso na presença do
Caçula, que, enciumado, perguntava: “Quando ele vai chegar? Por que ele
ficou tanto tempo no Líbano?”. Zana não lhe respondia, talvez porque também para ela era inexplicável o fato de Yaqub ter passado tantos anos
longe dela
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Dois irmãos (Parado Por Um Tempo)
Lãng mạnA casa foi vendida com todas as lembranças todos os móveis todos os pesadelos todos os pecados cometidos ou em vias de cometer a casa foi vendida com seu bater de portas com seu vento encanado sua vista do mundo seus imponderáveis [. . .] Carlos Dru...