Mas era um demônio na cama e na rede. Ele me contou cenas de amor
com a maior naturalidade, a voz pastosa, pausada, a expressão libidinosa no
rosto estriado, molhado de suor, molhado pela lembrança das noites, tardes e
manhãs em que os dois se enrolavam na rede, o leito preferido do amor, ali
onde os poderes de Zana se desmanchavam em melopeia de gozo e riso.
“Algaravias do desejo”, repetia Halim, citando as palavras de Abbas. Ele
abanava o tabaco do narguilé, a fumaça cobria-lhe o rosto e a cabeça e o
sumiço momentâneo de suas feições era acompanhado de um silêncio: o
intervalo necessário para recuperar a perda de uma voz ou imagem, essas
passagens da vida devoradas pelo tempo. Aos poucos, a fala voltava:
membranas do passado rompidas por súbitas imagens.
Não viajaram. Passaram três noites no Hotel América, esquivos do
mundo, mergulhados na ardência da paixão. Depois Halim quis passar uma
noite ao ar livre, nas cachoeiras do Tarumã, perto de Manaus. Quando
voltaram ao Biblos, Zana sugeriu ao pai que viajasse para o Líbano, revisse os
parentes, a terra, tudo. Era o que Galib queria ouvir. E partiu, a bordo do
Hildebrand, um colosso de navio que tantos imigrantes trouxe para a
Amazônia. Galib, o viúvo. Dele só restou uma fotografia, muito antiga, o rosto
com ar bonachão em fundo azulado, imitando pintura; o bigode terminava
em finas espirais, e o cabelo, uma juba grisalha, roçava a moldura dourada. Os
olhos, graúdos, cresceram ainda mais no rosto da filha. A foto de Galib ficou
pendurada na sala, para quem quisesse admirar.
Ele preparou e serviu o último almoço: a festa de um homem que
regressa à pátria. Já sonhava com o Mediterrâneo, com o país do mar e das
montanhas. Sonhava com os Cedros, seu lugar. Para lá voltou, reencontrou
partes dispersas do clã, os que permaneceram, os que renunciaram a
aventurar-se em busca de um outro lar. Zana recebeu duas cartas do pai: que
estava morando em Biblos, na mesma casa em que ela, Zana, havia nascido.
Ele festejava a volta cozinhando acepipes amazônicos: o pirarucu seco com
farofa, tortas de castanha, coisas que levara do Amazonas. Duas cartas, depois
nada. Em Biblos, dormindo na casa perto do mar, ele morreu. Mas a notícia
tardou a chegar, e, quando Zana soube, se trancou no quarto do pai, como se
ele ainda estivesse por ali. Depois balbuciou para o esposo: “Agora sou órfã de
pai e mãe. Quero filhos, pelo menos três”.
“Chorava que nem uma viúva”, disse-me Halim. “Se esfregava nas roupas do pai, cheirava tudo o que tinha pertencido ao Galib. Ela se agarrou às
coisas, e eu tentava dizer que as coisas não têm alma nem carne. As coisas
são vazias... mas ela não me ouvia.”
Halim tragou, expeliu fumaça pelas narinas, tossiu ruidosamente. De
novo, silenciou, e dessa vez eu não soube se era esquecimento ou pausa para
meditar. Ele era assim: não tinha pressa para nada, nem para falar. Devia
amar sem ânsia, aos bocadinhos, como quem sabe saborear uma delícia.
Como poderia enriquecer? Nunca poupou um vintém, esbanjava na
comida, nos presentes para Zana, nas vontades dos filhos. Convidava os amigos
para partidas de gamão, o taule, e era uma festa, noitadas de grande demora,
cheias de comilanças.
“Voltar para a terra natal e morrer”, suspirou Halim. “Melhor
permanecer, ficar quieto no canto onde escolhemos viver.”
Duas semanas trancada no quarto, duas semanas sem dormir com o
Halim. Gritava o nome do pai, atordoada, fora de si, inacessível. Os vizinhos
escutavam, tentavam consolá-la, em vão.
“O oceano, a travessia... Como tudo era tão distante!”, lamentou Halim.
“Quando alguém morria no outro lado do mundo, era como se desaparecesse
numa guerra, num naufrágio. Nossos olhos não contemplavam o morto, não
havia nenhum ritual. Nada. Só um telegrama, uma carta... A minha maior
falha foi ter mandado o Yaqub sozinho para a aldeia dos meus parentes”, disse
com uma voz sussurrante. “Mas Zana quis assim... ela decidiu.”
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Dois irmãos (Parado Por Um Tempo)
RomanceA casa foi vendida com todas as lembranças todos os móveis todos os pesadelos todos os pecados cometidos ou em vias de cometer a casa foi vendida com seu bater de portas com seu vento encanado sua vista do mundo seus imponderáveis [. . .] Carlos Dru...